Senado pautou para o último dia da COP26 a audiência pública final de projetos que vão na direção contrária dos compromissos assumidos na conferência. A carruagem levada para Glasgow pode virar abóbora.

Mais de 190 países enfrentam um desafio gigantesco na 26ª Conferência das Partes (COPs) para a convenção de mudanças climáticas: chegar em decisões capazes de cortar metade das emissões de gases do efeito estufa até 2030. Essa é a meta indicada por cientistas para termos mais de 50% de chance de limitar a 1,5ºC o aumento da temperatura do planeta até o final do século. 

Mas além de ser o principal evento de negociação internacional sobre mudanças climáticas, a COP de clima atrai diferentes esferas de governos, sociedade civil, academia e empresas para mostrarem suas iniciativas de mitigação e adaptação às mudanças climáticas. Por um lado, é um rico ambiente de trocas e aprendizados. Mas também conta com participantes que tentam fazer mágica para mostrar em duas semanas uma versão diferente daquilo que fazem em seus países no resto do ano.

No Brasil, a COP26 gerou uma corrida no governo federal e no poder legislativo para tentar mudar a merecida imagem de vilão ambiental, diante de fatos como o aumento de desmatamento e de emissões de gases do efeito estufa no país. Mas assim como sabemos que a carruagem da Cinderela vira abóbora após a meia-noite, já podemos antever que, no Brasil, o fim da COP nos colocará de volta à realidade que o país vive desde 2019: pressão para enfraquecer a legislação socioambiental. Mas antes de falar no pós-COP, quero primeiro falar de alguns acontecimentos dos dias que antecederam este evento até o fim da sua primeira semana.

No Brasil, o fim da COP nos colocará de volta à realidade que o país vive desde 2019: pressão para enfraquecer a legislação socioambiental.

Pouco antes da conferência, o Senado tentou emplacar uma notícia positiva para levar na bagagem. Seria a antecipação em cinco anos do prazo para cumprir a meta brasileira de redução de emissões de gases do efeito estufa (GEE), prevista para 2030. Mas o encanto com a aprovação do Projeto de Lei (PL) n.º 1539/2021 durou pouco. Na verdade, nem funcionou, pois o texto votado criou uma grande confusão! 

A meta apresentada pelo Brasil em 2015, como parte de sua contribuição nacional determinada (NDC, em inglês) ao Acordo de Paris, previu reduzir 37% das emissões de GEE do país até 2025, comparado aos níveis de 2005; e reduzir 43% das emissões até 2030. Porém, o PL aprovado no Senado passou a falar em redução de emissões projetadas. Mas qual seria o valor dessa projeção para calcular o quanto isso representa de redução de emissões? Não se sabe, pois o projeto indica que cabe ao presidente da República publicar um decreto informando. Assim, se as projeções forem inflacionadas via decreto, o suposto corte de emissões poderia virar mera fantasia e nunca ocorrer. 

Eis que dias depois, na primeira semana da COP, o Senado aprovou outro PL sobre o mesmo tema (nº 6.539/2019), para fazer o PL nº 1539/2021 desaparecer da pauta num passe de mágica. O PL nº 6539 não menciona números específicos de redução de emissões, mas se refere ao cumprimento das metas que o Brasil submete à Convenção Quadro do Clima em sua NDC (Contribuição Nacionalmente Determinada, na sigla em inglês), que representa o compromisso assumido no Acordo de Paris. E apesar de não promover uma antecipação de metas, esse PL corrigiria outro problema causado em 2020 pelo governo brasileiro, que resultou em um compromisso de emitir mais GEE até 2030! Como isso foi possível? 

Bem, de acordo com análise da ONU divulgada dias antes da COP26, a meta submetida pelo Brasil em 2020 implicaria em emissões de 300 milhões de toneladas de CO2 a mais em 2030, comparado ao  compromisso assumido em 2015. Isso porque o país atualizou para cima a base de cálculo referente às emissões de 2005, mas não aumentou o percentual de redução previsto. 

Mas a magia da COP fez com que o próprio governo anunciasse no primeiro dia da conferência um aparente aumento da meta, que passaria a ser um corte de 50% em relação às emissões de 2005. Tal valor, ainda não formalizado junto à convenção do clima, representaria no máximo um quase empate com a meta de 2015, se a base de cálculo for o quarto inventário de emissões de GEE do Brasil. 

Mas seria suficiente o Brasil igualar a nova meta àquela de 2015? Pelas regras do Acordo de Paris, não, pois as novas metas devem mostrar uma progressão em relação à anterior, ou seja, não podem ser menores ou mesmo iguais.

O clima de magia continuou na COP e dois anúncios feitos pelo Brasil no segundo e terceiro dias da conferência poderiam, sim, indicar um aumento da sua ambição climática. Primeiro, o país aderiu à Declaração de Florestas de Glasgow, assinada por mais de 100 países, com o compromisso de dar um fim ao desmatamento até 2030. Outro anúncio importante foi a adesão ao compromisso de cortar 30% das emissões globais do gás metano até 2030. No Brasil, o metano está associado principalmente à pecuária devido ao arroto do boi no gigantesco rebanho brasileiro (temos mais bois que habitantes no país). 

Mas o encanto com o anúncio sobre florestas nem chegou ao final da primeira semana da COP! Na sexta, dia 5 de novembro, o governo federal publicou no Diário Oficial uma minuta de projeto de lei que indica uma meta de desmatamento ilegal zero até 2030. A diferença está entre se comprometer a desmatamento zero na declaração de Glasgow, mas falar em desmatamento ilegal zero na minuta de PL. 

A diferença está entre se comprometer a desmatamento zero na declaração de Glasgow, mas falar em desmatamento ilegal zero na minuta de PL. Mesmo que 95% do desmatamento já seja ilegal, uma mudança de legislação pode legalizar aquilo que hoje é proibido, fazendo com que, magicamente, um desmatamento ilegal vire legal.

Mesmo que 95% do desmatamento já seja ilegal, uma mudança de legislação pode legalizar aquilo que hoje é proibido, fazendo com que, magicamente, um desmatamento ilegal vire legal. E para os que duvidam que isso ocorra, basta lembrar da aprovação do novo Código Florestal em 2012, que permitiu uma anistia ao desmatamento ilegal ocorrido em 41 milhões de hectares no país. O próprio código florestal tem sido alvo constante de projetos de lei para enfraquecê-lo (mais de 50 PLs segundo um levantamento de 2020). 

De fato, as duas declarações em que o Brasil aderiu (sobre florestas e metano) têm caráter político e não representam decisões formais. Porém, se quiser realmente mostrar que tais anúncios feitos na conferência não foram apenas um encanto temporário, o Brasil precisa assumir os dois compromissos em uma NDC formalmente protocolada perante à convenção do clima. 

De acordo com um estudo recente, uma meta que inclua desmatamento zero nos biomas Amazônia e Cerrado representaria corte de 82% comparado à emissão de 2005. Esse é o número mínimo que o Brasil deveria submeter em uma nova NDC se quiser fazer a comunidade internacional – e nacional – acreditar que os dias de vilão ambiental ficarão para trás.

Dito isso, passemos agora para o que nos aguarda no Brasil no último dia da COP, 12 de novembro. O Senado agendou para essa data a terceira audiência pública sobre os projetos de lei para alterar as regras de regularização fundiária (PLs 2633/2020 e 510/2021). E após essa audiência, há grande risco de ser colocado em votação em plenário. Já expliquei em uma coluna anterior sobre os graves problemas desses dois projetos. Mas volto a citá-los porque sua aprovação será a efetiva transformação da carruagem levada para a COP em abóbora. 

Ambos os PLs fundiários permitem colocar à venda, via licitação, terras públicas ocupadas ilegalmente que não cumpram requisitos para receberem título de terra com dispensa de licitação. Seria o caso, por exemplo, de áreas de florestas ocupadas ilegalmente e desmatadas no futuro. Se forem aprovados, darão um fim a qualquer compromisso de zerar desmatamento até 2030, pois será um estímulo para continuidade de invasão ilegal e destruição de florestas. 

Ambos os PLs fundiários permitem colocar à venda, via licitação, terras públicas ocupadas ilegalmente. Se forem aprovados, darão um fim a qualquer compromisso de zerar desmatamento até 2030, pois será um estímulo para continuidade de invasão ilegal e destruição de florestas. 

Até mesmo o compromisso de reduzir a emissão de metano seria comprometido. Isso porque na maioria das florestas públicas ocupadas ilegalmente os invasores plantam pasto e colocam gado, criado de forma ineficiente, para simular algum tipo de atividade agrária e assegurar a posse. Nesse tipo de pecuária improdutiva não há interesse em adotar práticas de bom manejo ou reduzir tempo de abate animal, duas formas de reduzir as emissões de metano.

Diante desse possível final infeliz, os últimos dias da COP26 podem ser fundamentais para reforçar aos representantes do governo e do legislativo a necessidade de honrar os compromissos assumidos sobre florestas e metano. Isso significa abandonar os projetos de lei que vão na direção contrária, pois não conseguiremos cortar nossas emissões de forma substancial até 2030 sem zerar desmatamento. E não haverá fim do desmatamento enquanto a floresta pública continuar sendo privatizada aos seus invasores ilegais. 


Os artigos de opinião são de responsabilidade do seu autor.

Sobre o autor

Advogada, mestre e doutora em Ciência do Direito pela Universidade Stanford (EUA). Nascida e residente em Belém (PA), é pesquisadora associada do Imazon, atuando há 18 anos para o aprimoramento de leis e políticas ambientais e fundiárias para conservação da Floresta Amazônica.

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