Dois projetos de lei em tramitação no Congresso abrem caminho para a privatização das florestas públicas e precisam ser engavetados se quisermos conservar o maior patrimônio ambiental brasileiro.

Há 15 anos, o Congresso Nacional aprovou uma lei que estabelecia o fim da apropriação ilegal de florestas públicas. A Lei nº 11.284/2006 deu um basta à antiga prática de ocupação e desmatamento de terra pública visando sua privatização. Ou assim achávamos na época! Hoje, os dados de desmatamento mostram que essa lei foi insuficiente, dado o contínuo avanço sobre esse patrimônio ambiental dos brasileiros: 40% do desmatamento na Amazônia entre 2013 e 2020 ocorreu em áreas públicas sem destinação fundiária ou sem informação sobre sua destinação. Ou seja, em terras que pertencem à União ou a estados, mas que ainda não tiveram uma formalização sobre seu uso.

Pela lei de 2006, as florestas públicas devem ser destinadas prioritariamente ao reconhecimento de direitos de povos indígenas, de comunidades tradicionais e à criação de unidades de conservação. Também podem ser alocadas à produção sustentável por meio de concessões florestais, sujeitas a um processo de licitação pública. A lei ainda instituiu o crime de desmatamento em terras públicas ou devolutas, com pena de reclusão de dois a quatro anos e multa. Mas se essas regras já existem há tantos anos, como chegamos em 2021 com tamanha pressão e avanço de ocupação das florestas públicas?

Mapa com áreas destinadas e não destinadas da Amazônia Legal. Crédito: Imazon.

Há várias causas para esse problema, mas em 2017 houve um fato marcante: o Congresso converteu em lei a medida provisória n.º 759/2016. Essa MP mudou leis fundiárias usando como justificativa a necessidade de reconhecer o direito à terra de milhares de famílias que ocuparam a Amazônia no período da ditadura militar. Na verdade, já havia uma lei para isso desde 2009. Porém, a nova regra aprovada beneficiava um público ainda não contemplado: os ocupantes de grandes imóveis, nas áreas de 1.500 até 2.500 hectares. Também permitiu que essas regras fossem aplicadas às áreas do Incra fora da Amazônia Legal.

Um dos aspectos mais deletérios dessa lei foi permitir que o governo pudesse emitir título de terra para quem ocupou florestas públicas ilegalmente entre 2005 e 2011, ignorando assim a lei de gestão de florestas públicas de 2006. Naquele momento, uma grande contradição jurídica foi estabelecida: desde 2006, o governo federal não poderia privatizar áreas de floresta públicas; mas se a pessoa desmatou a floresta até 2011 como prova de sua ocupação, então a titulação foi liberada. Três ações contestam as várias inconstitucionalidades dessa lei, mas o Supremo Tribunal Federal não se pronunciou a respeito e nem mesmo as incluiu na pauta de julgamentos.

Essa mudança jurídica em 2017 representou a vitória de um grupo político que não se conformou com a decisão feita em 2006 de que as florestas públicas pertencem a todos os brasileiros e que devem continuar em pé para cumprirem uma função essencial ao país na provisão de serviços ambientais. Foi a vitória dos que defendem que a floresta deve ser derrubada, loteada e alocada para algum tipo de produção agropecuária, mesmo com milhões de hectares já desmatados e ocupados de forma improdutiva no país. Foi a vitória dos que são contrários à livre concorrência, um princípio garantido na Constituição, pois defendem um modelo que premia com um título de terra os que invadiram e desmataram terras públicas. Foi a vitória da prática de mudar a lei para anistiar os que a desobedecem.

E esse mesmo grupo encontra hoje apoiadores dentro e fora do Congresso que defendem dois projetos de lei em tramitação, que, se aprovados, irão impor um destino trágico às florestas públicas brasileiras. Sob a mesma justificativa usada em 2017 de reconhecer o direito à terra de milhares de famílias que ocuparam a Amazônia no período da ditadura militar, os dois projetos – o PL 2.633/2020, já aprovado pela Câmara, e o PL 510/2021 no Senado – possuem em um trecho quase imperceptível o seu principal propósito: abrir caminho para a privatização das florestas públicas brasileiras. 

A alteração proposta por ambos PLs introduz um §2º no Art. 38 da Lei n.º 11.952/2009 que permitirá a venda por licitação de áreas que não cumpram os requisitos da lei para titulação com dispensa licitatória. Os textos não impõem qualquer salvaguarda para proteger as florestas públicas de serem alvo dessa venda, e as regras desta concorrência serão definidas posteriormente em decreto presidencial.

Alguns dirão que essa possibilidade de licitação não abrange áreas de floresta. Mas isso não se sustenta quando avaliamos que o PL aprovado na Câmara quer consolidar um procedimento já previsto em decreto e que contradiz a lei de gestão de florestas públicas. Pelo Art. 12 do Decreto n.º 10.952/2020, o governo federal adota o pressuposto de que terras públicas serão colocadas para privatização via regularização fundiária, a não ser que algum órgão do próprio governo prove que não se deve fazê-lo – por exemplo, apresentando estudos completos para reconhecimento de terras indígenas ou para criação de unidades de conservação. Mas como esperar que tais órgãos consigam tal feito, com o contínuo enfraquecimento de seus trabalhos? 

Se olharmos para o histórico desse procedimento entre 2013 e 2018, temos a noção do problema: dos 47 milhões de hectares que passaram por essa avaliação sobre qual deveria ser o destino dessas terras, quase 70% foram destinados para regularização fundiária futura. Porém, a maior parte desse território sequer tinha demandas para titulação e ainda havia áreas sobrepostas ao cadastro nacional de florestas públicas. Aprovar o PL 2.633/2020, portanto, consolidará em lei esse procedimento previsto hoje em decreto, e reduzirá o alcance da lei de gestão de florestas públicas.

No atual contexto político do Brasil e ainda sob efeito da pandemia, não há ambiente para emendar ou mitigar os problemas desses dois projetos de lei, já que não se trata apenas de retirar ou mudar alguns artigos. Ao contrário do que seus defensores proclamam, essa não é uma discussão sobre ocupações feitas no passado, pois para essa demanda já há regras com amplas facilidades para titulação, cujos procedimentos já foram atualizados para uso de novas tecnologias. 

A discussão que deve ser feita ao analisar esses PLs é sobre o destino das nossas florestas públicas, que devem ser designadas ao reconhecimento de demandas territoriais de povos indígenas, populações tradicionais, conservação e uso sustentável via concessões. Está nas mãos do Senado a decisão sobre paralisar essa discussão para proteger as florestas ou selar um futuro de fogo e destruição com a aprovação de qualquer um desses dois projetos. 


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Sobre o autor

Advogada, mestre e doutora em Ciência do Direito pela Universidade Stanford (EUA). Nascida e residente em Belém (PA), é pesquisadora associada do Imazon, atuando há 18 anos para o aprimoramento de leis e políticas ambientais e fundiárias para conservação da Floresta Amazônica.

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