O Brasil continua repetindo a receita que resultou, historicamente, no avanço da destruição florestal: vender terra pública a preços baixos a seus invasores.
O livro “A ferro e fogo”, de Warren Dean, é leitura obrigatória para entender os motivos que levaram à depredação da Mata Atlântica, que atualmente possui apenas 12% de sua cobertura florestal original. Mas, além disso, é uma referência para identificar erros históricos que o Brasil continua replicando na gestão de seu patrimônio florestal, especialmente na Amazônia. Chega a ser assustadora a semelhança entre fatos ocorridos com cem anos de diferença nos dois biomas. Um desses exemplos está nos trechos abaixo:
“As terras do Estado estavam sendo alienadas por 15% a 20% de seu valor de mercado, outorgando benesses a especuladores e empobrecendo o estado. Além disso, os madeireiros cortavam árvores em terra pública, livres de leis e sem pagar aluguel.”
“Governos estadual e federal vendem terra pública por valores muito abaixo do cobrado pelas áreas no mercado. Em média, os governos estaduais cobram 15% do valor de mercado e o governo federal cobra 26%, considerando os valores usados como base para o cálculo do preço final”.
O primeiro trecho está no livro de Warren Dean. Já o segundo está em um estudo que coordenei no Imazon, publicado em 2021, com uma análise de leis e práticas fundiárias nos nove estados da Amazônia Legal. Os dois trechos se referem a situações ocorridas com um século de diferença, mas esse tempo não foi suficiente para mudar a lógica predominante na política agrária brasileira de que as elites usam seu poder para se apropriar a baixo custo do patrimônio fundiário da sociedade.
Ao final do livro, Dean, morto em um acidente em 1994, declara que a história da destruição da Mata Atlântica poderia alertar e tentar evitar que o mesmo destino ocorra na Amazônia. É triste constatar que o Brasil continua repetindo várias das fórmulas que resultaram na concentração de terra arrasada nas mãos de poucos, com prejuízos ambientais, sociais e econômicos para a população em geral.
Mais assustador é perceber que algumas dessas fórmulas equivocadas estão sendo exacerbadas na Amazônia. Um exemplo foi a decisão do governo estadual do Pará de reduzir o valor da terra na regularização fundiária. Em 2020, o Conselho Estadual de Política Agrária e Fundiária votou pela diminuição dos valores cobrados na venda de terras públicas estaduais em processos de regularização fundiária no Pará. A proposta partiu da Federação da Agricultura e Pecuária do Pará (Faepa) e foi aceita pelos demais conselheiros presentes na reunião. Os novos valores foram publicados no Decreto Estadual n.º 1.684/2021.
Uma análise do Imazon demonstrou que a nova regra permite a venda de terra pública estadual por 1,2% do valor médio cobrado no mercado de terras no Pará. Para obter esse valor, o estudo calculou o quanto seria cobrado na eventual regularização de 5.540 imóveis no estado, identificados no Cadastro Ambiental Rural em áreas estaduais sem destinação fundiária. A regra estadual prevê a aplicação de vários índices que reduzem ainda mais o preço de referência do imóvel definido em decreto.
Por exemplo, no município de São Félix do Xingu, um dos que mais desmata na Amazônia, o novo valor de referência do preço da terra é R$ 612 por hectare, seis vezes menor que a média do mercado. Após aplicar os índices previstos na legislação para cálculo do preço final do imóvel – como distância entre o imóvel e o centro urbano mais próximo –, o valor médio do hectare cai para R$ 63,20 em 248 imóveis avaliados pelo Imazon entre 4 módulos fiscais e 2.500 hectares (ou seja, médios e grandes imóveis). E se adicionarmos os imóveis menores nessa conta (acima de 100 hectares), o valor médio final seria de R$ 49,65 por hectare em 566 imóveis em São Félix do Xingu incluídos no estudo.
Warren Dean relata em seu livro um fato ocorrido em 1954 em São Paulo no Pontal do Paranapanema, que na época ainda possuía uma boa parte de sua cobertura florestal conservada. Havia uma proposta de estabelecer uma reserva ambiental na região, mas a área era alvo de grileiros. Dean narra que um deputado apresentou às pressas um projeto de lei na Assembleia Legislativa do Estado visando arrendar terras no Pontal a particulares “sob a condição de que cada um conservasse a cobertura florestal de um quarto de sua área arrendada”. O deputado alegava que essa solução seria “uma garantia melhor para a floresta porque o estado era incompetente para proteger suas reservas”.
Mais uma vez, as semelhanças um século depois são espantosas, pois o próprio Pará viveu experiência similar em 2019. Naquele ano, a Assembleia Legislativa aprovou em trinta dias uma nova lei de terras, sem discussão pública apropriada. A nova regra eliminou um requisito existente na lei anterior de que o preço cobrado pela venda de terra pública deveria ser baseado em valores do mercado imobiliário rural. É fato que essa condição não era cumprida, pois o estudo do Imazon mostra que os valores praticados até 2020 já estavam abaixo do mercado. Porém, a supressão deste requisito na nova lei acabou abrindo caminho para a redução do preço da terra concretizada no decreto de 2021.
Quando a nova lei de terras foi aprovada em 2019 no Pará, os defensores do projeto argumentaram que o governo não tinha condições de proteger as florestas públicas, considerando o tamanho continental do estado do Pará. Por isso, defenderam que titular essas áreas aos particulares seria uma forma mais eficiente na preservação ambiental. É o mesmo tipo de discurso narrado por Dean sobre o Pontal do Paranapanema, uma região que foi amplamente desmatada e marcada por conflitos fundiários e grilagem de terras.
É também a mesma lógica dos projetos de lei no Congresso Nacional que visam flexibilizar a lei federal de regularização fundiária. Porém, diferentemente de cem anos atrás, temos no presente inúmeros estudos demonstrando que as áreas mais conservadas são as públicas protegidas, especialmente territórios indígenas, e as mais devastadas são as privadas.
O Brasil não conseguirá por fim ao desmatamento requentando os mesmos incentivos que contribuíram historicamente com a ocupação ilegal e a destruição da floresta para apropriação privada das terras públicas. Enquanto houver a expectativa de legalização dessas áreas invadidas e devastadas, seguida de altos lucros dos invasores com sua venda, continuaremos assistindo a depredação das florestas públicas.
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