Toda atenção é necessária para impedir que a política de regularização fundiária seja usada como sinônimo de anistia à grilagem de terras.

O Senado Federal iniciou em setembro uma avaliação dos impactos ambientais gerados com a ocupação ilegal de terras públicas e com a política de regularização fundiária. O foco é especialmente na Amazônia devido ao aumento expressivo do desmatamento desde 2019 e evidências de que o roubo de terras públicas está associado a essa degradação ambiental. A expectativa é que os resultados dessa avaliação sejam apresentados na 27ª Conferência das Partes para a Convenção Quadro do Clima, a COP-27, que ocorrerá em novembro no Egito.

O tema é urgente e merece atenção do Congresso Nacional. Estudos do Instituto de Pesquisa da Amazônia (Ipam) indicam, por exemplo, que dois terços do desmatamento ocorrido em florestas públicas ocorrem em áreas que possuem Cadastro Ambiental Rural (CAR). Porém, tais áreas não poderiam estar inscritas no CAR como imóveis privados. Portanto, esse é um indício de que essas áreas estão sendo alvo de grilagem de terras, ou seja, roubo de terras públicas.

Na primeira audiência pública sobre a avaliação do Senado, ocorrida em 13 de setembro, apresentei dados que mostram um cenário ainda mais preocupante. O risco não está  apenas no CAR sobreposto a florestas públicas. Está também em imóveis sobrepostos a essas florestas e que foram georreferenciados para regularização fundiária pelo próprio governo. Há decisões de instâncias no governo federal que sinalizam a regularização futura dessas áreas. Somando tudo, 69% das florestas públicas federais estão sob ameaça de serem privatizadas.

No entanto, a lei de regularização fundiária proíbe que essas florestas sejam alvo de titulação de terra (Art. 4º, III da Lei n.º 11.952/2009), o que estaria sendo ignorado pela política de regularização fundiária. Por isso, a iniciativa do Senado é importante, pois pode encaminhar medidas para proteger as florestas públicas e alinhar a regularização fundiária às políticas ambientais.

Há pelo menos três direcionamentos importantes que deveriam constar no relatório da avaliação. Primeiro, a necessidade de dar transparência e assegurar participação na condução da política fundiária. Uma determinação concreta seria a recomendação para reinstalar o comitê previsto em lei para acompanhamento e avaliação da regularização fundiária. Ele foi extinto em 2019 no meio de um revogaço de comitês governamentais, mas deveria ter sido efetivado novamente, já que possui previsão legal.

Segundo, o Senado deveria recomendar a mudança das regras atuais da Câmara Técnica de Destinação de Terras Públicas Federais, pois elas acabam privilegiando a destinação de áreas à regularização fundiária, mesmo em florestas públicas. Como a lei de regularização fundiária proíbe a titulação em florestas públicas, as regras dessa Câmara precisam estar alinhadas à legislação. Dessa forma, devem prever como opções de destino a florestas públicas o reconhecimento de territórios indígenas, de comunidades quilombolas e populações tradicionais; a criação de unidades de conservação e a alocação de áreas para concessão florestal.

Christian Braga / Greenpeace
Área sendo queimada na Reserva Extrativista Jaci-Paraná, no município de Porto Velho, Rondônia. Junto com o crescimento do desmatamento, a produção de carne e soja também vêm aumentando no estado, pressionando os povos indígenas da região e ameaçando a segurança de seus territórios. Dentro do território Karipuna, novos focos de desmatamento, pontes e maquinários revelam a invasão constante e grilagem da terra.

Terceiro, o Senado deveria sinalizar a necessidade de o Supremo Tribunal Federal (STF) julgar as ações diretas de inconstitucionalidade da lei que alterou as regras de regularização fundiária em 2017. Naquele ano, o Congresso Nacional aprovou a Lei n.º 13.465/2017 que flexibilizou requisitos para emissão de título de terra.

Dentre eles, houve uma extensão de sete anos no prazo de ocupação de terras públicas que podem receber título de terra, passando de 2004 para 2011. O problema é que essa alteração acabou permitindo que áreas de florestas ocupadas e desmatadas até 2011 sejam regularizadas, o que precisa ser reconhecido como um retrocesso ambiental e, portanto, considerado inconstitucional.

“O problema é que essa alteração acabou permitindo que áreas de florestas ocupadas e desmatadas até 2011 sejam regularizadas, o que precisa ser reconhecido como um retrocesso ambiental”.

Brenda Brito

Uma decisão do STF declarando a inconstitucionalidade dessa alteração na lei teria um efeito adicional de prevenir que o Congresso Nacional faça outra mudança legislativa visando uma nova anistia de ocupações ilegais. Isso porque a inconstitucionalidade da mudança na data limite de ocupação de terras públicas seria também aplicável a qualquer tentativa posterior de extensão de prazos. Este risco é real, já que dois projetos de lei (PLs) atualmente no Senado visam promover essa nova alteração, o PL 2633/2020 e o PL 510/2021. Os PLs podem inclusive entrar na pauta em breve, após votação do primeiro turno das eleições.

Toda atenção é necessária para impedir que a política de regularização fundiária seja usada como sinônimo de anistia à grilagem de terras. Há uma demanda legítima para reconhecer ocupações antigas em terras públicas, que precisa ser atendida pelo governo, mas sem legitimar conflitos de terras e ilegalidades. Aguardemos com atenção os próximos passos do Senado, seja com a conclusão da avaliação em curso ou com o risco de votações dos PLs da grilagem de terras.


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Sobre o autor

Advogada, mestre e doutora em Ciência do Direito pela Universidade Stanford (EUA). Nascida e residente em Belém (PA), é pesquisadora associada do Imazon, atuando há 18 anos para o aprimoramento de leis e políticas ambientais e fundiárias para conservação da Floresta Amazônica.

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