Estudo sobre nova corrida do ouro que tem como alvo a Amazônia mostra que grande parte do minério é extraído ilegalmente, deixando rastro de desmatamento e contaminação por mercúrio.

Desde a descoberta de ouro em Minas Gerais, no início do século 18, o Brasil se tornou um dos maiores exportadores de minério do mundo. Essa exploração ocorreu, porém, com um enorme custo humano, com centenas de milhares de negros escravizados, obrigados a extrair o minério dourado em condições desumanas. Grande parte desse ouro já se foi e se encontra nas joias de famílias nobres na Europa e instituições bancárias em todo o mundo, deixando para trás um rastro de pobreza e subdesenvolvimento. 

Hoje vivemos uma nova corrida do ouro tendo como alvo a Amazônia. A mineração é uma das atividades que mais exercem pressão sobre a floresta amazônica. Entre os anos de 2019 e 2020, 20,6 mil hectares foram degradados e transformados em áreas para mineração na Amazônia legal, de acordo com os dados do INPE. O maior índice ocorreu em 2019, com 10,5 mil hectares desmatados. A alta do preço internacional do ouro, o desmonte das agências ambientais e o apoio do presidente Jair Bolsonaro à atividade garimpeira incentivaram a expansão da atividade para terras indígenas e unidades de conservação. 

Na Amazônia Legal, 20,6 mil hectares foram degradados para mineração entre 2019 e 2020 – o maior índice ocorreu em 2019, com 10,5 mil ha desmatados.

Em 2021, apenas até setembro, já são 10,8 mil ha desmatados pelo garimpo.

A situação é ainda mais grave em 2021. Entre os meses de janeiro e setembro, o garimpo ultrapassou o índice de 2019, alcançando 10,8 mil ha. Também presenciamos a escalada nos conflitos sociais entre garimpeiros e comunidades indígenas. A produção em minas regulares e em garimpos atingiram recordes históricos, assim como as exportações. 

Segundo a Constituição, todos os recursos minerais, como o ouro, por exemplo, são de propriedade da União, independente de quem seja dono da área onde o minério é encontrado. Portanto, para extrair o minério é necessário obter autorizações da Agência Nacional de Mineração (ANM) e das agências ambientais competentes, além de pagar uma compensação financeira pela exploração de recursos minerais (CFEM) relativa a 1,5% do faturamento líquido. 

Diversas investigações da polícia e Ministério Público apontam para casos de ouro vindo de áreas onde é proibida a exploração, como terras indígenas e unidades de conservação, é “esquentado” a partir de declarações falsas que dissimulam a real origem do mineral. Após essa “lavagem”, entra no mercado e pode circular entre instituições financeiras, joalherias e até mesmo ser exportado sob a condição de ouro legal. Até então não estava claro o tamanho do problema. 

Com base na metodologia desenvolvida para a rastreabilidade da agropecuária, nosso grupo na UFMG colaborou com o Ministério Público Federal (MPF) para estimar o nível de ilegalidade da produção de ouro no Brasil. Para isso, o MPF desenhou um protocolo que aponta para indícios de irregularidades com base na legislação vigente. A UFMG, por sua vez, combinou dados de processos minerários e pagamento da CFEM provindos da ANM com imagens de satélite e informações sobre áreas protegidas, de modo a aplicar o protocolo do MPF.

Imagem à esquerda mostra situação em que a atividade foi classificada como ilegal, pois havia título minerário (em vermelho) mas satélite comprovou ausência de exploração minerária. À direita, imagem de satélite mostra situação potencialmente ilegal ao observar uma área de mineração que extrapola os limites do título minerário (em amarelo). Fonte: Rajão, Manzolli et al. UFMG, 2021. Credit: Rajão, Manzolli et al, 2021 Credit: Rajão, Manzolli et al, 2021

Dessa análise emergiu que 28% da produção do ouro não tem origem clara pela falta de informações espaciais (apesar da maioria vir de grandes empresas em Minas Gerais) e 40% tem origem aparentemente legal. Nos 32% restantes foi possível identificar evidências de irregularidade, inclusive casos de “garimpos fantasma”,quando a origem declarada do ouro não apresenta evidências de atividade minerária nas imagens de satélite (ps. essa são últimas estimativas com base em novas imagens de satélite, e portanto trazem valores um pouco diferentes dos já publicados no relatório completo já divulgado). 

A situação é ainda mais alarmante na produção de ouro na Amazônia. Das 80 toneladas extraídas entre 2019 e 2020 na região, 44 t possuem evidências de irregularidades (ilegais e potencialmente ilegais). E tudo indica que isso é somente a ponta do iceberg. Nosso estudo identifica somente o ouro “mal lavado”, ou seja, quando houve uma tentativa de dissimulação de origem e foi escolhido um título minerário que apresenta incoerências e irregularidades visíveis por imagens de satélite. 

Distribuição espacial dos títulos minerários com registro de produção de ouro em 2019 e 2020 classificados como ilegais, potencialmente ilegais, legais e sem informação. Imagem: Rajão,Manzolli et al. UFMG, 2021.

O estudo também não traz nenhuma informação concreta sobre a quantidade de ouro que é traficado sem uma tentativa de legalização. Porém, os dados do DETER fornecem evidências sobre o tamanho do impacto da mineração ilegal, cuja verdadeira proveniência está sendo ocultada.

Do início de 2019 até final de 2020, o DETER identificou 20,6 mil hectares de desmatamento para mineração, sendo 84% dessa área localizada no estado do Pará, 7% no Mato Grosso e 6% no Amazonas. Somente 4% desse total ocorreu na área dos processos minerários citados na CFEM como origem do ouro, sugerindo a prevalência do garimpo ilegal. Também, do total desmatado no período para mineração, 5 mil ha ocorreram em terras indígenas homologadas, com destaque para a TI Kayapó, com 2.137 ha, e Munduruku, com 1.925 ha, ambas localizadas no Pará.

Distribuição, em hectares, dos alertas de desmatamento do DETER para mineração. Imagem: UFMG, 2021.

Em consequência da ausência de controles mais rigorosos por parte da ANM, dos órgãos ambientais e da Receita Federal, esse ouro ilegal gera conflitos sociais, a destruição de recursos ambientais e a poluição por mercúrio usado nos garimpos. Através da calculadora de impactos do garimpo ilegal, ferramenta elaborada pelo MPF e pela organização não governamental Conservação Estratégica (CSF-Brasil), é possível estimar a valoração dos danos gerados por cada grama de ouro ilegal. 

As 7,7 toneladas extraídas de forma ilícita resultam em um prejuízo entre 22,6 e 47,3 bilhões de reais, adotando respectivamente, uma metodologia conservadora (valores médios) e do princípio da precaução (valores máximos). Sendo as doenças cardiovasculares, como hipertensão e infarto, em decorrência da contaminação por mercúrio responsáveis, em média, por 87% deste valor e o impacto do desmatamento por 9,4%, como mostram os relatórios gerados pela ferramenta. 

Enquanto isso, para toda a exploração de ouro no país, o governo arrecadou apenas 640 milhões de reais através da CFEM e do IOF-Ouro, menos que 0,03% do prejuízo calculado pela metodologia conservadora. 

Além dos danos socioambientais, o ouro ilegal é muitas vezes utilizado para lavar dinheiro proveniente do tráfico de armas e drogas, grilagem de terras e corrupção. Essa tese é corroborada também pela concentração de transações de ouro ilegal em poucos produtores e compradores. Isso indica que, enquanto a atividade aurífera ilegal concentra o lucro na mão de poucos atores, os danos ambientais são coletivizados. Mais uma vez a história se repete: a riqueza do país é exportada para o benefício de poucos, deixando para trás um rastro de destruição humana e ambiental para toda a sociedade.


Os artigos de opinião são de responsabilidade do seu autor.

Sobre os autores

Raoni Rajão é professor de Gestão Ambiental e Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia no departamento de Engenharia de Produção da UFMG e membro afiliado da Academia Brasileira de Ciências. Desde o mestrado, pela Universidade de Lancaster (Reino Unido), se dedica ao estudo da relação entre tecnologia, ciência e políticas públicas, com ênfase na avaliação de políticas de controle do desmatamento e de pagamento por serviços ambientais.

E-mail: [email protected]

Bruno Manzolli atua como assistente de pesquisa no Laboratório de Gestão de Serviços Ambientais do departamento de Engenharia de Produção na UFMG. É também pesquisador no Centro de Inteligência Territorial, com ênfase na análise de big data, geoprocessamento e modelagem de sistemas ambientais.

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