Em uma luta ainda fora do radar da opinião pública, povos indígenas e comunidades tradicionais tentam evitar que a expansão dos combustíveis fósseis na floresta repita desastres vividos no Equador e no Peru.
Em abril de 2020, enquanto o mundo inteiro assistia, assustado, ao avanço da pandemia de covid-19, 35 mil indígenas do povo Kichwa da Amazônia equatoriana viram-se forçados a lidar com um desastre adicional em suas terras.
“Os jovens foram pescar de manhã cedo e, quando voltaram, seus corpos estavam cobertos de óleo”, contou ao El País o presidente da comunidade Kichwa de Panduyaku, Olger Gallo. Esse óleo havia se espalhado rapidamente pelos rios Napo e Coca depois da ruptura de três tubulações que compõem o Sistema de Oleoduto Transequatoriano (Sote) e o Poliduto Shushufindi-Quito, que transportam petróleo cru da Amazônia para a capital do país.
Em um momento em que a pandemia exigia reclusão de todos e deprimia a economia, as comunidades indígenas, já socialmente vulneráveis, perderam, durante meses, sua fonte de alimentos e água. Crianças que se banharam nos rios afetados, antes de saber do vazamento, tiveram doenças estomacais e de pele, e um povo inteiro teve que suportar a contaminação de seus locais sagrados e a ruptura indesejada de suas tradições.
Desde então, os Kichwa tentam obter, sem sucesso, reparação pelos estragos. A estatal petrolífera PetroEcuador e a empresa privada que administra o oleoduto, a OCP Ecuador, se esquivam de suas responsabilidades, enquanto o governo do país esforça-se para seguir adiante como se nada tivesse acontecido.
Esse episódio lamentável é só um entre os muitos casos de vazamento de óleo registrados nos últimos anos, na Amazônia do Equador e de vizinhos como o Peru e a Colômbia. No que tange ao Brasil, esse conjunto de tragédias pode ser encarado como um trailer do filme que podemos assistir se não tomarmos medidas para manter quanto antes, a nossa Amazônia em zona livre da extração de petróleo e gás.
Na linha de frente dessa tarefa, a de salvar a maior floresta tropical do planeta dos potenciais estragos dos combustíveis fósseis, estão comunidades indígenas como a dos Huni Kuin, do Acre, e a dos Mura, do Amazonas. São esses alguns dos povos já afetados ou potencialmente afetados pelas empresas do setor, interessadas em concretizar projetos colonialistas no entorno dos territórios tradicionais.
Os Huni Kuin sofrem com a ameaça que áreas próximas a seus territórios sejam oferecidos para exploração, como no caso do Vale do Javari. Em 2013, quando a ANP tentou leiloar blocos de petróleo e gás nessa região, as comunidades do entorno das áreas fizeram uma campanha, com apoio das ONGs, para mostrar que não aceitariam essa agressão. Conseguiram evitar a concretização do certame, mas temem que a tentativa volte a acontecer. Já os Mura, do Amazonas, são obrigados a conviver com impactos como clareiras no meio da floresta próxima a suas terras, por causa de operações extrativistas já em curso.
Líderes desses povos vêm tentando alertar a sociedade de que precisamos prevenir esse desastre socioambiental, no bioma que tanto orgulha os brasileiros, mas o tema ainda se encontra fora do radar da maior parte dos cidadãos e da imprensa.
No governo Bolsonaro, as agressões habituais à sobrevivência dos povos indígenas e do bioma amazônico, que vêm de décadas atrás e que nunca foram enfrentadas com o rigor que deveriam, exacerbaram-se a tal ponto que fica difícil prestar atenção a qualquer nova ameaça. Ainda assim, o histórico do petróleo e do gás na Pan-amazônia é tão desastroso que exige atenção e ação daqueles que se importam com o meio ambiente.
No caso dos povos que vivem no Amazonas, terceiro maior produtor de gás do Brasil, o risco já é bastante concreto. A Petrobras opera no estado o polo de Urucu, ligado a Manaus por um gasoduto de 660 quilômetros, que atravessa vastos trechos de floresta e rios, em uma região pontilhada por unidades de conservação e terras indígenas.
Mais recentemente, empresas privadas como a russa Rosfnet e a carioca Eneva passaram a apostar na expansão do extrativismo fóssil no Amazonas, estratégia bastante questionável sob a perspectiva socioambiental. Em setembro de 2021, a companhia brasileira inaugurou a Unidade de Tratamento de Gás Azulão, em Silves, primeira área produtora de gás na Bacia do Rio Amazonas.
Anunciada pela empresa como um grande avanço, em comunicado para seus acionistas, a investida encorajou o cacique Jonas Mura, do povo Mura do Amazonas, a participar ainda mais assertivamente de protestos pela defesa dos territórios indígenas da região.
Em novembro de 2021, durante a COP26, o maior encontro da ONU sobre o clima, Mura e ativistas da 350.org fizeram um protesto em frente à sede do banco BTG Pactual, na Avenida Faria Lima, em São Paulo. O objetivo foi exigir que instituição financeira, dona de 21,53% da Eneva, se desfaça desses ativos, nocivos às comunidades locais e ao planeta.
“Eles financiam essas empresas que chegam em nossos territórios e vão desmatando tudo, atingindo os rios e deixando as águas poluídas. Os peixes das águas vão se afastando, e as caças da mata também. Isso tudo vem atingindo diretamente nossa população, que conta com 1.500 indígenas no município de Silves”, contou Mura, durante a manifestação.
O BTG Pactual, que se anuncia como um banco preocupado em alcançar altos padrões socioambientais e de governança (ESG), recebeu uma carta entregue por Mura no dia do protesto, mas, desde então, nada fez para se desvincular da destruição da Amazônia.
É importante lembrarmos que não só algumas empresas multibilionárias são coniventes com essa irresponsabilidade, mas também o próprio governo federal. A Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) incluiu blocos localizados na Amazônia em alguns de seus mais recentes leilões de áreas de exploração.
Em dezembro de 2020, por exemplo, 16 blocos na Bacia do Amazonas foram oferecidos à iniciativa privada. À época, a imprensa noticiou um estudo da 350.org que apontou que a produção de petróleo e gás nesses locais pode provocar ou agravar impactos socioambientais consideráveis, como desmatamento, invasões e conflitos, em 47 terras indígenas e 22 unidades de conservação do entorno. A ANP ignorou o estudo e manteve os blocos à disposição. Dezenas de outros blocos no bioma encontram-se, até hoje, disponíveis pelo sistema de oferta permanente.
Esse descaso das autoridades com a Amazônia é também o que leva os Huni Kuin a se manifestar. Presidente da Federação dos Povos Huni Kuin do Acre, Ninawá Huni Kui tem levado a espaços de debate, no Brasil e no exterior, seu alerta sobre a necessidade de freamos a exploração dos combustíveis fósseis em todo o mundo, usando a floresta amazônica como exemplo máximo disso.
Na COP26, em entrevistas à imprensa internacional ou em palestras organizadas por grandes universidades, Ninawá conta que na Pan-Amazônia, governos e empresas usam táticas para dividir e conquistar as comunidades indígenas, como prometer ganhos financeiros irreais ou atacar o modo de vida indígena, como se fosse um entrave ao progresso.
O que os apoiadores da hecatombe climática não sabem ou não querem aceitar é que a grande maioria dos indígenas que vivem nas TIs da Amazônia não está disposta a aceitar, por nenhuma soma em dinheiro, os impactos que o petróleo e o gás podem provocar. Para os povos originários, a floresta não é um recurso negociável, mas a fonte da vida e do próprio sentido da vida. Por isso, os indígenas seguirão resistindo à insanidade de um mundo baseado em combustíveis fósseis e desmatamento.
O profundo senso de coletividade e integração com o meio ambiente são pilares fundamentais da existência dos povos indígenas. Nesses valores encontram-se os caminhos para que a sociedade brasileira conserve, valorize e promova o desenvolvimento real da Amazônia, com a floresta em pé, os direitos indígenas resguardados e a vida preservada dos impactos destrutivos da exploração de combustíveis fósseis.
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