A combinação entre a ciência “formal” e o conhecimento tradicional na Amazônia rompe barreiras e mostra a importância do diálogo entre diferentes saberes

Em “A ciência do concreto”, o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss faz um “passeio” pelos conhecimentos de Povos Tradicionais. Representante do pensamento ocidental, no qual a ciência “dura” e “formal” prevalece, Lévi-Strauss mostra que a desvalorização dos saberes desses Povos – estabelecidos de forma similar ao conhecimento do chamado “Ocidente”, a partir de tentativas, erros e acertos, posteriormente transmitidos de geração em geração – nada mais é do que outro exemplo do etnocentrismo e da arrogância de quem se autointitula como “Civilização”, ignorando que este se trata de um termo plural e diversificado.

Em sua coluna na Folha, o diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS) do Rio de Janeiro, Ronaldo Lemos, chama atenção para um sobrado no Centro Histórico de Manaus, no Amazonas, onde a ciência “formal” encontra os conhecimentos indígenas. Para ele, trata-se de um dos lugares mais interessantes do Brasil, ao mostrar que a combinação entre saberes distintos auxilia a compreensão do mundo.

Nos fundos do imóvel está o Biatuwi, a primeira casa de comida indígena do país, de acordo com Lemos. Nela, dona Clarinda Ramos, cozinheira do Povo Sateré-Mawé, prepara refeições como filé de tambaqui puquecado, quinhapira do peixe matrinxã e farofa de maniwara – um tipo de formiga. 

Dona Clarinda se prepara para ingressar no doutorado em antropologia – já é mestre pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), pesquisando a musicalidade de seu Povo. Ela não só abriu a primeira casa de comida indígena do país como faz parte da primeira geração de antropólogos oriundos dos Povos Originários, que deixaram assim de ser “exotizados” para serem agentes de pesquisas sobre suas tradições.

Outro antropólogo indígena a atuar no sobrado é João Paulo Barreto, do Povo Tukano, responsável pelo Centro de Medicina Indígena Bahserikowi, que oferece tratamentos e remédios naturais de Povos Originários do alto do Rio Negro. Uma das razões para a instalação do centro médico é um trauma familiar vivido por Barreto.

Em 2009, a sobrinha de Barreto, Luciane, foi picada por uma cobra e levada a um hospital em São Gabriel da Cachoeira. A equipe médica queria amputar o pé da menina. Na visão dos Tukano, é difícil entender um procedimento médico que retira uma parte do corpo. A família pediu à equipe que Luciana fosse tratada aliando medicina com os conhecimentos tradicionais indígenas, o que não foi aceito.

Após um embate – um dos médicos bradou que “tinha estudado oito anos para decidir o que era melhor, enquanto ele não tinha estudado um dia sequer”, destaca o diretor do ITS Rio –, a questão foi decidida com o apoio do Ministério Público Federal (MPF), que permitiu o tratamento conjunto. A menina se recuperou totalmente, hoje tem 26 anos e filhos. A partir desse embate, não só o Centro de Medicina Indígena foi criado, como vários programas de cooperação e pesquisa conjunta surgiram, envolvendo a Fiocruz e outros órgãos.

“Dona Clarinda e João Paulo tiveram a grandeza de trilhar o caminho das ciências europeias para auxiliar sua compreensão do mundo. Pouca gente tem a grandeza de trilhar o caminho oposto: permitir que a ciência dialogue com os conhecimentos tradicionais”, finaliza Lemos. Uma simbiose fundamental tanto para ampliar os saberes como para garantir a preservação e a recuperação da Floresta Amazônica.


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