Produtos feitos com frutos e conhecimentos nativos ajudam a manter a floresta em pé e melhorar a vida de populações tradicionais e indígenas.
A iniciativa
- Nome
- De Mendes Chocolates, empresa que comercializa chocolates e cupulates (chocolate de cupuaçu) produzidos com frutos nativos da Amazônia
- Quem está envolvido
- indígenas, quilombolas, ribeirinhos, caboclos, agricultores familiares, César De Mendes e Celo de Bonfarto Kaj Konservado
- O que é isso
- usa bioeconomia e o comércio justo para ajudar a conservar a floresta, manter e melhorar a vida de populações amazônicas
- Onde está
- da Amazônia para o Brasil e exterior
Nascido na amazônica Macapá (AP), César De Mendes já atuou como engenheiro químico, pesquisador, professor e consultor em vários cantos do Brasil. Mas o filho de mãe quilombola e pai ribeirinho entalhou novos rumos na intensa carreira quando retomou lembranças de familiares fazendo suco de cacau colhido do pé. No decurso de suas extensas jornadas pela floresta, mudou-se para Colônia Chicano, comunidade com ribeirinhos e quilombolas no município de Santa Bárbara do Pará, a 50 quilômetros de carro de Belém.
Lá, fundou a Chocolates De Mendes, resultado de experiências anteriores com frutos nativos da Amazônia. Inquieto, seguiu investigando como melhorar a produção e o processamento do cacau e do cupuaçu, meios para aplicar novas tecnologias, para ampliar a troca de conhecimentos e beneficiar populações no meio da Amazônia, como indígenas, quilombolas, ribeirinhos, caboclos e agricultores familiares. Essas trocas e buscas permanentes o levaram a diversas expedições pela floresta e mudaram seu olhar sobre essas cadeias produtivas.
Agora, César busca manter negócios que associem o respeito à natureza e às comunidades amazônicas. Com produção artesanal, alcançando o Brasil todo e agregando tecnologias como compensação de carbono emitido e rastreamento por blockchain, os produtos da De Mendes, fundada em 2014, vão abrindo novos mercados e conquistando prêmios, como o de Startup do Ano, concedido durante o Fórum Mundial de BioEconomia, em outubro de 2021, em Belém (PA), por seu fomento à bioeconomia e à mitigação das mudanças climáticas.
Nesta entrevista ao PlenaMata, o especialista em chocolates, que se vê como uma “pessoa analógica”, conta sobre sua trajetória, percalços em meio à floresta e conquistas sociais e comerciais desde a redescoberta de suas raízes e da potência da biodiversidade amazônica. Também comenta sobre a necessária ação urgente pela preservação da floresta e do equilíbrio climático planetário, pelo bem da própria humanidade.
Confira abaixo os principais trechos da conversa.
PlenaMata – Conte um pouco sobre o cacau. Ao contrário do que muitos ainda pensam, é na verdade um fruto nativo da Amazônia e tem inúmeras variedades, certo?
De Mendes – O cacau é nativo da Amazônia sul-americana. Ele se dispersou e gerou muito mais variedades na porção brasileira, onde há mais água e mais floresta. Com maior interesse comercial, começou a ser levado, sobretudo do Pará, para a Europa, África, Ásia e outras regiões dominadas por grandes colonizadores. Outros produtos da região também eram explorados, como a seringueira, o peixe-boi e madeiras. O cacau tem boa dispersão na Amazônia, ainda mais com a ajuda das águas, das cheias e vazantes dos rios. Há variedades, inclusive, adaptadas a zonas alagadas, com raízes que apoiam e mantêm a árvore acima da água. O rastreamento genético formal do cacau começou há décadas através de grandes indústrias e pesquisadores. Hoje sabemos que há cerca de 2 mil espécies nativas e 35 mil variedades adaptadas pelas pessoas.
Como foi o processo até a fundação da De Mendes, em 2014?
Trabalho com chocolates desde 2005 e minha família aproveitava o fruto e também o cupuaçu que colhia no pé para fazer sucos e outros itens caseiros. Encerrei a empresa anterior, a Amazônia Cacau, em 2013, para dar um novo significado à produção de chocolates e cupulates da Amazônia. Uma grande maioria de clientes do Brasil e do Exterior cobrava que nossos produtos lembrassem a Amazônia e seus povos, e não só tivessem belas embalagens para o tradicional formato de barras, criado pelos europeus há cerca de um século. Estudos mostram que povos andinos consumiam chocolate líquido há quase 10 mil anos. Recuperando tradições familiares e regionais, entrei na mata atrás das plantas nativas de cacau e das populações que as mantêm. Como o fruto ocorre sobretudo em locais isolados, a parceria com comunidades tradicionais e indígenas de cada região foi um arranjo natural para conseguirmos produzir os chocolates. Também foi grande o esforço para desmistificar e valorizar o chocolate com o fruto nativo, mais intenso e escuro que variedades tradicionalmente cultivadas e consumidas em mercados como na Europa e Estados Unidos. A procura e a produção do cacau na Amazônia também melhorou após a chegada da Vassoura de Bruxa nos cacaueiros da Bahia (no final dos anos 1980). Nesse processo todo, minha maior contribuição foi produzir chocolate com cacau nativo e protagonismo de populações da floresta.
Quem foi e quem apoiou essa mudança de paradigma nos negócios?
Sempre havia trabalhado só. As empresas de antes eram centradas na minha pessoa, mas tenho que admitir que nunca fui um bom gestor, um bom investidor e assim por diante. Também me sentia impotente diante das muitas formas de agressão que sofriam populações indígenas e tradicionais, quase sempre com seus direitos de cidadania quase zerados. De 2018 para cá, elas passaram a me procurar numa escala muito maior para avaliar possibilidades de uso do cacau e do cupuaçu em suas regiões. Passei a não dar conta do número de comunidades a visitar, dos trabalhos em campo e na fábrica. Queria atender todo mundo, mas faltavam recursos, melhorar processos, tecnologias. Nunca procurei apoio diretamente, mas entre os interessados estava a Celo de Bonfarto Kaj Konservado, algo como “Propósito de Bem-Estar e Conservação”, em Esperanto. A empresa é nossa principal investidora.
Como é o envolvimento de indígenas, ribeirinhos, caboclos e outras populações na produção dos chocolates e cupulates?
Essas populações são as verdadeiras donas e guardiãs desses materiais genéticos e parceiras dos empreendimentos com chocolate e cupuaçu. Do que adiantaria eu cultivar esses frutos numa fazenda, colher e produzir chocolate sem o envolvimento dessas pessoas. As visitas às comunidades ocorrem com mapeamento nosso ou por convite delas. Hoje temos 71 povoados registrados já fornecendo cacau e cupuaçu em toda a Amazônia, de Ashaninkas, no Acre, a Ianomâmis, em Roraima, e mantemos relações com outras 480 comunidades, mas ainda temos capacidade para inseri-las nos negócios. Nas fornecedoras, realizo um treinamento de em média 20 dias para a produção de cacau fino. Uma relação próxima, empática e sinérgica faz toda a diferença. A troca de saberes com essas comunidades é inigualável, e todas recebem compensações acima de valores de mercado.
Quais os critérios para a definição dos fornecedores, em meio à floresta?
Nossa produção de base é 100% artesanal. O cacau nativo precisa estar isolado na Amazônia e ter pouco ou nenhum contato com populações e culturas não florestais. Em cada região, estudo o potencial de proteção do cacau e do cupuaçu mediante as demandas e interesses comerciais, as variedades disponíveis, se há bons ambientes para a colheita, quebra, fermentação, secagem, armazenagem e transporte, e até as possibilidades de um cultivo agroflorestal, com até 70 diferentes espécies, sempre se for do interesse de cada comunidade. Afinal, o que sensibiliza é o que entra na boca. Assim, também compartilho sobre como podem produzir chocolate caseiro, melhorar seus cultivos, fazer algum bolo ou outra comida.
Alguns momentos mais marcantes de expedições ao longo de décadas?
Dois sustos foram especialmente grandes, ambos no Vale do Javari, no oeste do Amazonas, onde naufraguei umas cinco vezes. Numa delas, o barco bateu à noite numa enorme sucuri e afundou. Em outro episódio, uma onça enfiou a cara na barraca onde estava dormindo, após muitas horas de caminhada na floresta. Ninguém se feriu, mas foram vários baldes de água para me lavar após o susto (risos).
Como é o processo produtivo, da floresta à fábrica e consumidores?
A fábrica está em Santa Bárbara do Pará, conectada por asfalto a Belém, de onde partem voos nacionais e internacionais. Cacau e cupuaçu chegam até nós sobretudo por avião ou barco, desde os muitos portos na capital paraense. O açúcar que usamos vem de uma cooperativa no Paraná. Hoje comercializamos 12 barras de chocolates e cupulates. Os produtos acabados são escoados quase sempre pelo aeroporto de Belém. As vendas alcançam todo o Brasil e pontualmente alguns locais no Exterior, como Viena (Áustria). Mas estamos namorando compradores em países latino-americanos e europeus.
Tão importante quanto tudo isso é divulgar e valorizar as populações da floresta, as verdadeiras estrelas de sua conservação. O jeito como vivem nos ajuda a viver nas cidades, com ar, água e comida bons e fartos.
César De Mendes
Como as tecnologias foram incorporadas a uma produção de base artesanal?
Fazemos parte dos Laboratórios Criativos da Amazônia (confira em PlenaMata) e aproveitamos tecnologias que possam adicionar qualidade, confiabilidade e redução de impactos a nossos produtos. Cada comprador pode conferir a origem do cacau que foi usado em seu chocolate escaneando o QR Code em cada embalagem (um exemplo aqui). As emissões de poluentes que ampliam a crise do clima de cada barra produzida é compensada, não só pela preservação da floresta, mas principalmente pela compra de créditos de carbono gerados por projetos sustentáveis. Tão importante quanto tudo isso é divulgar e valorizar as populações da floresta, as verdadeiras estrelas de sua conservação. O jeito como vivem nos ajuda a viver nas cidades, com ar, água e comida bons e fartos. Muitas pessoas no meio urbano sequer sabem de sua existência ou dos benefícios que elas lhe proporcionam.
Como vês o futuro de negócios como o seu diante do avanço do desmatamento, da crise do clima e de outros problemas gerados pela sociedade moderna?
Minha alimentação vem hoje quase toda de cultivos próprios numa pequena área que recuperei. Sigo combatendo os impactos sobre a floresta, rios e populações amazônicas, mas minha visão não é muito otimista diante da falta de ações concretas das grandes economias. Temos grandes encontros e discursos, mas quando olho aqui sigo vendo imensas barcaças carregadas de toras, a explosão dos garimpos criminosos. Os melhores estudos mostram sérios impactos para todo o planeta se a temperatura continuar subindo. Dois terços da população mundial será duramente afetada por extremos climáticos, ampliando a fome e outras mazelas. Algo se quebrou e precisa ser urgentemente consertado, incluindo com uma mudança em nosso consumismo, na falta de reflexão sobre o destino do planeta e das pessoas. Somos a única espécie que não controla sua proliferação em benefício do equilíbrio ecológico, todas as outras, sim. Não dá para seguir aumentando a população diante do consumo crescente de recursos naturais finitos. Há boa gente gritando sobre a situação, mas é preciso arregaçar as mangas e fazer alguma coisa efetiva pela Amazônia, pelo Brasil e pelo mundo. Já temos teoria suficiente.
Como se engajar
- Site da iniciativa
- www.demendes.com.br/
- Contatos
- (11) 5199-1060
(91) 3199-2595 (WhatsApp)
[email protected]
Imagem no topo mostra trabalhador colhendo cacau na mata nativa. Foto em destaque e de César Mendes: Mauro Rossi / Barro De Chão