Correlações entre os fatos atuais com o pano de fundo apresentado pelo livro “Arrabalde”, de João Moreira Salles, escancaram a encruzilhada atual da Amazônia
Uma das teses apresentadas pelo documentarista João Moreira Salles no livro “Arrabalde”, lançado recentemente, é a do fracasso epistêmico que pode ser encontrado na Amazônia. Uma extensa conversa sobre a obra publicada na Folha – o autor viveu seis meses na região – dá mais elementos para se entender qual é o ponto de vista de João Moreira Salles.
Segundo o autor, o fato de grande parte dos brasileiros ignorar as riquezas reais da Amazônia abre todas as portas para que a ocupação predatória da floresta ocorra. “Você ordena a floresta, tira a desordem, que é o princípio da selva — esse imbricamento de coisas que não respeita a ordem do engenheiro, uma coisa depois da outra, uma coisa que acaba e outra começa— e você põe ali uma plantação que é exatamente isso, o ordenamento cartesiano do território”, explica o documentarista brasileiro, que na própria conversa com Eduardo Sombini, publicado pelo jornal paulista, admite que chegou aos 50 e poucos anos sem conhecer a Amazônia e isso o levou a se debruçar sobre a região
Muito do que fala Salles no livro, de que a cultura da Amazônia, levada pela região nos anos 1970 principalmente, dá muito mais peso ao pasto, ao boi, ao agronegócio nocivo do que às reais bases do desenvolvimento sustentável – esta segunda visão aparece mais entre os indígenas e quilombolas – também está muito presente em ações atuais. Ou, mais precisamente, nas vistas nos últimos anos.
O fato de os militares, por exemplo, terem atuado na linha negacionista defendida pelo governo Bolsonaro em relação à Amazônia ilustra bem a situação. Como descreve o especialista Lucas Ferrante no ECOA UOL, durante a pandemia, mas também no curso de todo o governo anterior, os representantes das forças armadas enfraqueceram a fiscalização de Áreas Protegidas e Terras Devolutas na Amazônia, além de Terras Indígenas. O artigo de opinião escrito pelo biólogo brasileiro está baseado em estudos científicos recentes publicados em revistas de renome internacional. Até mesmo a pandemia chegou a ser usada como cortina de fumaça para ignorar a proteção da floresta.
Um dos grandes legados do governo Bolsonaro, como discute tanto João Moreira Salles quanto Ferrante, é o fato de a soberania da Amazônia ter sido praticamente perdida. Mas não para algum inimigo internacional, como sempre temeram os militares brasileiros, mas para o crime organizado. Entre outros motivos, por causa da ausência do Estado.
“A grande ironia perversa disso que aconteceu nos últimos dez anos e que se intensificou muito nos últimos quatro é que a gente sabe que essa sempre foi a grande paranoia do pensamento militar: a soberania da Amazônia, a internacionalização da Amazônia, a ONU quer tomar conta da Amazônia, os americanos querem tomar conta da Amazônia, os alemães vão descer com helicópteros na Amazônia, a China quer a Amazônia. Pois bem, foi durante o governo civil mais militarizado da nossa história que o Brasil perdeu de fato a soberania sobre regiões extensíssimas do bioma porque está entregue ao crime e à anarquia”, afirma Moreira Salles na conversa que teve com a Folha.
Como desarmar essa bomba é algo complexo, que vai requerer um grande esforço político do atual governo. Enquanto isso, toda a história da Amazônia mostra que a riqueza da floresta está se esvaindo, assim como o desenvolvimento social e econômico dos moradores da floresta ainda é pífio.
O desperdício, em muitas áreas, continua enorme. Um estudo repercutido pelo site((o))eco mostra como muitas madeireiras, por exemplo, não conseguem aproveitar nem 25% da matéria-prima que elas retiram da floresta. O que também facilita muito a vida dos ilegais.
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