Com aquecimento incomum do Atlântico e El Niño, Rio Negro registra menor nível de água em 120 anos, e Solimões é tomado por imensos bancos de areia seca

Em 1977, os músicos brasileiros Sá e Guarabyra lançaram a canção “Sobradinho”, que denunciava a inundação de várias comunidades no interior nordestino por causa da implantação da hidrelétrica de mesmo nome. No refrão, os cantores questionavam: “O sertão vai virar mar, dá no coração o medo que algum dia o mar também vire sertão”.

Depois de centenas de barragens instaladas no Brasil e zilhões de toneladas de carbono jogadas na atmosfera com a queima de combustíveis fósseis em todo o planeta, a “profecia” de Sá e Guarabyra parece se concretizar não nos oceanos – que, por causa do aquecimento global, estão se elevando –, mas num outro “mar”, de água doce, na Amazônia. A seca que atinge a região vai se confirmando como a pior de toda a história e ganha contornos dramáticos a cada dia, com mais de meio milhão de pessoas afetadas e mortandade de peixes e botos.

No Amazonas, dos 62 municípios do estado, 60 têm a sede e quase a totalidade das comunidades rurais de suas áreas às margens de rios, igarapés e lagos. A extensa dependência da população dos cursos d’água explica porque o problema não é apenas ambiental, mas a mais grave crise humanitária vivida recentemente na Amazônia Ocidental, destaca o Terra.

Até mesmo a segurança alimentar da população vem sendo ameaçada, com alimentos tendo que vir de longe devido à dificuldade de se produzir em muitas localidades. Diante do cenário, o governo estadual já estuda remover comunidades inteiras que vivem da agricultura familiar nas áreas de várzea dos principais rios do estado por conta das mudanças climáticas. Um exemplo típico de adaptação provocada pela crise do clima, algo que vai se tornar cada vez mais comum em todo o planeta.

Além da estiagem extrema, a região convive com as queimadas. Manaus, capital do Amazonas, encravada no meio da floresta, ficou recentemente pelo menos três dias encoberta por uma nuvem espessa de fumaça causada por incêndios no entorno da cidade, o que a transformou numa das cidades com a pior qualidade do ar no mundo.

Secas e cheias são fenômenos normais na Amazônia. A região é cortada por rios gigantescos e é ocupada, em sua maior parte, pela floresta, que produz umidade em enormes quantidades e a libera na atmosfera, lembra a Folha. Mas, neste ano, a região está sendo afetada por dois fenômenos simultâneos que vêm contribuindo para a intensidade da estiagem, segundo cientistas ouvidos pela BBC: o El Niño e o aquecimento incomum das águas do Oceano Atlântico.

O pesquisador e meteorologista do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (CEMADEN), Giovanni Dolif, mantém cautela e diz que ainda não é possível atribuir a ocorrência dos dois fenômenos às mudanças climáticas. No entanto, afirma que a estiagem registrada neste momento é compatível com os modelos projetados em que há aumento da temperatura do planeta.

Na CBN, o jornalista André Trigueiro reforça que nunca se viu antes na Amazônia o que está acontecendo agora. Ele esteve na região e constatou com os próprios olhos a seca extrema, que levou o rio Negro ao menor nível de água dos últimos 120 anos.

“Quando falamos de rios na Amazônia, estamos falando de uma perda brutal de mobilidade das comunidades ribeirinhas. Estamos falando de se movimentar para comprar comida, comprar remédio, passar num centro urbano para regularizar sua situação no Bolsa Família, por exemplo. Colapsa a rotina de dezenas de milhares de famílias. Sem rio, não há como”, atesta.

Em Sobradinho dos anos 1970, populações tiveram de fugir do excesso de água. No “sertão amazônico” de 2023, água é tudo o que elas querem – e precisam.


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