É fundamental que os povos tradicionais e amazônidas participem das decisões relacionadas ao seu próprio território, incluindo conferências sobre clima, processos políticos e desempenhando papéis de protagonismo em eventos relacionados à Amazônia.

A Amazônia é a maior floresta tropical do mundo e desempenha um importante e necessário papel na regulação dos ciclos da natureza, que permitem a existência da vida no planeta. Por isso, o tema Amazônia está presente quando se pensa em emergências climáticas, por exemplo. Uma série de eventos, conferências, cúpulas, COP, entre muitos outros, têm a Amazônia como pauta. Mas para que os acordos e as tomadas de decisões estejam ancorados na realidade da região, é preciso que pessoas amazônidas façam parte da construção desses acordos e não sejam apenas figurantes nesses processos.

Os nativos amazônidas devem participar ativamente da construção das políticas para a região por diversas razões. Primeiramente, somos nós que vivenciamos no dia a dia as dificuldades e os benefícios dessa região. Depois, é importante lembrar, e eu, enquanto uma mulher indígena não posso esquecer, que nós estamos vivendo neste bioma há milhares de anos: estudos arqueológicos apontam que há pelo menos 11.200 anos nossos ancestrais já deixavam suas marcas nesse território, que hoje é chamado de Amazônia brasileira.

Os nativos amazônidas devem participar ativamente da construção das políticas para a região por diversas razões. Primeiramente, somos nós que vivenciamos no dia a dia as dificuldades e os benefícios dessa região. Depois, é importante lembrar, e eu, enquanto uma mulher indígena não posso esquecer, que nós estamos vivendo neste bioma há milhares de anos.

Raquel Tupinambá

Aqui, as florestas são frutos da interação entre humanos e natureza. Ao logo dos milhares de anos, ciência e tecnologia têm sido desenvolvidas na região, bem antes da chegada dos europeus. Foi estabelecido um modelo de bem-viver contrário ao desenvolvimentista que visa o domínio da natureza. A destruição das florestas, dos rios e dos povos nativos é parte da ocupação recente da Amazônia, no período colonial, chamado “moderno”. No período contemporâneo, o conhecimento das populações nativas foi inferiorizado, as populações foram escravizadas. Importante ressaltar que a população indígena sofreu um genocídio, e grupos inteiros foram extintos.

Hoje, quando falamos da Amazônia, os povos nativos precisam fazer parte do processo e não apenas “cumprir tabela”. Nossa história precisa ser respeitada, pois a Amazônia e seus povos ainda são vistos por muitos como o lugar dos selvagens. Para ilustrar esse imaginário, trago o episódio de uma emissora de TV que ocorreu durante a Cúpula da Amazônia, que aconteceu em agosto de 2023 em Belém, PA. Um apresentador de um telejornal ao vivo proferiu a seguinte fala: “Vou chamar agora o fulano para que ele não fique esperando lá no meio do mato”, referindo-se ao repórter que estava na capital paraense, Belém, cobrindo o evento. Esse é apenas um exemplo do imaginário que se tem da região, mas, principalmente, de que a floresta é algo a ser dominado.

Hoje, quando falamos da Amazônia, os povos nativos precisam fazer parte do processo e não apenas “cumprir tabela”. Nossa história precisa ser respeitada, pois a Amazônia e seus povos ainda são vistos por muitos como o lugar dos selvagens.

Raquel Tupinambá

E digo isso porque é fundamental que sejamos respeitados e levados a sério nos acordos e nas tomadas de decisões que nos afetam. Vou compartilhar duas situações que vivenciei durante a Cúpula da Amazônia, um evento que reuniu os chefes de Estado dos oito países membros da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA): Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela. É importante destacar que houve uma pressão sobre o governo para que houvesse uma maior participação da sociedade nas discussões. Por isso, foram criados os Diálogos Amazônicos, que foram eventos promovidos pela sociedade civil e pelos governos nos dias 4 a 6 de agosto, antecedendo a Cúpula, para abordar temas cruciais para a região e que estavam relacionados à Cúpula. Aqui, compartilho dois dos episódios que vivenciei durante o evento.

No primeiro episódio, fui convidada a participar de uma mesa de discussão sobre “bioeconomia e os caminhos para um desenvolvimento sustentável na Amazônia”. Aceitei o convite prontamente, pois já estaria em Belém naquele período. No entanto, perguntei sobre a possibilidade de apoio financeiro. Essa pergunta foi feita principalmente para entender qual posição estava sendo atribuída a nós, já que é comum que palestrantes recebam passagens, hospedagem e diárias.

Quando entrei na sala para compor a mesa, não pude deixar de notar que todos os outros integrantes da mesa eram homens de pele branca, assim como os organizadores, que também eram homens brancos. Eu era a única representante feminina e que pertencia a populações nativas naquele espaço de discussão. Aproveitei o momento para enfatizar a importância e a necessidade de que as populações locais estejam envolvidas na construção do que deve ser o desenvolvimento para a região.

O fortalecimento dos modos de vida das populações locais é uma solução crucial para a manutenção da sociobiodiversidade e para manter as florestas em pé, entre muitos outros temas que foram abordados durante a mesa de discussão. Ao final da mesa, não tive dúvidas de que estava ali para cumprir a “cota”, mas isso não me intimidou. Abordei os organizadores e comentei sobre a importância e a necessidade da diversidade e da inclusão de amazônidas nas discussões. Também aproveitei para questionar sobre o apoio financeiro referente a minha participação, e disseram que me dariam um retorno imediato, que até hoje não chegou. Isso evidencia o tratamento que nós, amazônidas, recebemos.

O segundo episódio: fui chamada já durante o evento para participar de uma mesa que tratava sobre “o papel das igrejas para uma Amazônia sustentável”, que contava com a participação de autoridades do alto escalão dos governos da Amazônia ali presente e lideranças religiosas.

Em seguida, perguntei se teria um espaço para fala, pois estava ciente do risco de sermos apenas “enfeites”. Foi-me assegurado que, sim, haveria um espaço para a minha fala e para uma conversa mais próxima com uma das autoridades presentes. Também solicitei apoio e fui informada de que deveria chegar com antecedência, devido à possibilidade de tumulto na entrada devido à presença das personalidades.

Cheguei com 30 minutos de antecedência, e já havia uma fila se formando. Conversei com os organizadores, que facilitaram minha entrada. Ao entrar na sala, me sentei na primeira fila, mas logo em seguida pediram que eu me levantasse para dar lugar às pessoas “importantes”. Quando olhei para trás, todas as cadeiras já estavam ocupadas. Fiquei mais ou menos tranquila, pois pensei que seria convidada a participar da “mesa”. No entanto, isso não aconteceu. Fui obrigada a dividir uma cadeira com outras pessoas presentes. Permaneci na sala até quase o final, quando ficou claro que não seria convidada a compor a mesa ou a falar. A “autoridade” com quem eu deveria conversar já havia saído da sala. Foi então que, como forma de “protesto”, decidi deixar a sala.

Para mim, essas situações evidenciam o olhar, o tratamento e o lugar que são atribuídos aos amazônidas. É fundamental que mudemos esse cenário. Nós, indígenas e pesquisadores, temos afirmado que já estamos ocupando esses espaços, mas agora é crucial que nossas ideias e nossa cosmovisão sejam incorporadas às discussões e que participemos ativamente de todo o processo de construção, desde o início até a conclusão dos acordos. Nesse sentido, temos proferido a frase: “Nada mais sobre nós, sem nós.”


Os artigos de opinião são de responsabilidade do seu autor.

Sobre o autor

Raquel Tupinambá é mulher indígena, agricultora e militante pelos direitos indígenas. É uma liderança de seu povo e coordenadora do Conselho Indígena Tupinambá do baixo Tapajós Amazônia (CITUPI). Além disso, é doutoranda em Antropologia Social.

E-mail: [email protected]