A tese, apoiada pela bancada ruralista, ameaça os modos de vida dos povos indígenas e está sendo analisada no STF devido a um litígio com o povo Xokleng, iniciado pelo governo de Santa Catarina.

O Marco Temporal é uma tese jurídica que se baseia na ideia de que os povos indígenas só têm direito a reivindicar determinada terra caso já estivessem nela quando a Constituição Federal foi promulgada, em 05 de outubro de 1988. O debate dessa tese está em julgamento conduzido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e surge das 19 condicionantes impostas pelo próprio STF em 2009, quando julgou o caso da Raposa Serra do Sol. Na ocasião, o STF deu ganho de causa aos indígenas Makuxi em sua luta pela demarcação, mas com 19 condicionantes, sendo uma delas essa: de que as próximas demarcações teriam que ser assim – apenas demarcar terras indígenas de povos que já estivessem (ou ainda estivessem) nas terras das quais os não-índios tentaram, por séculos, expulsá-los, em 05 de outubro de 1988.

O Marco Temporal é uma proposta encampada pela bancada ruralista e visa restringir o direito fundamental dos povos indígenas. Se for aprovado, os povos indígenas que já vêm sendo expulsos sofrerão uma séria ameaça de extinção de seus modos de vida, principalmente o povo Xokleng. Isso ocorre porque a tese voltou a ser tema de análise no STF devido a um litígio contra os Xokleng, iniciado pelo governo do estado de Santa Catarina.

Histórico

Há muito tempo, os vários indígenas sofreram com doenças trazidas pelos colonizadores e também morreram em muitos conflitos. Desde que chegaram às Américas em 1500, os colonizadores vêm sistematicamente expulsando os povos indígenas das regiões que ocupam: eram comuns os “descimentos” e as “correrias”, expedições de não-índios que caçavam esses povos para escravizá-los ou exterminá-los.

Milhares de povos indígenas habitavam o Brasil, vivendo com suas línguas, costumes, religião e outros aspectos. Em outras palavras, os povos indígenas já possuíam seus direitos antes de o Brasil existir como país.

Durante séculos, os vários povos indígenas lutaram muito para que o Estado Brasileiro reconhecesse seus direitos culturais, direitos à terra, organização social, línguas, crenças, tradições e outros. Houve uma mudança na forma como o Estado brasileiro tratava esses povos indígenas na virada do século XIX para o século XX: antes, era inclusive obrigatório por lei matar e exterminar esses povos (como é exemplo nos Autos da Devassa), mas nesse período os povos indígenas passaram a contar com alguma proteção. Surge nessa época o SPILTN – Serviço de Proteção ao Índio e Localização dos Trabalhadores da Nação, um órgão estatal com a função de proteger os povos indígenas.

Mas essa “proteção” era devastadora, pois as leis brasileiras estabeleciam que os povos indígenas eram como crianças, sendo considerados inimputáveis e incapazes segundo o direito brasileiro. Era o período da tutela. Um exemplo disso é a Lei nº 6.001/1973, conhecida como Estatuto do Índio, que manteve esse paradigma até a década de 70 do século XX, estabelecendo que os indígenas seriam fatalmente “integrados à comunhão nacional”, deixando de ser índios. Enquanto isso não acontecesse, eles eram desprovidos de direitos à autonomia e cidadania.

Nessa fase, mais do que proteger, o Estado tutelava os povos indígenas. Isso mudou em 1988, com a promulgação da Constituição Federal, que passou a reconhecer os povos indígenas como cidadãos plenos, dotados de direitos, e estabeleceu que, para usufruir desses direitos, os povos indígenas não precisavam mais deixar de ser povos indígenas. Além disso, obrigou o Estado a incluir esses povos e suas organizações representativas nos processos de tomada de decisão.

Nessa fase, mais do que proteger, o Estado tutelava os povos indígenas. Isso mudou em 1988, com a promulgação da Constituição Federal, que passou a reconhecer os povos indígenas como cidadãos plenos, dotados de direitos, e estabeleceu que, para usufruir desses direitos, os povos indígenas não precisavam mais deixar de ser povos indígenas.

Jatuta Wajãpi

Em 1989, foi criada a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que foi ratificada pelo Estado brasileiro em 2004, a fim de garantir o direito dos povos indígenas a serem consultados pelo governo antes da execução de projetos de empreendimentos, barragens, projetos de mineração, leis, medidas administrativas e outros.

No entanto, os povos indígenas nunca abandonaram a luta e passaram a se organizar cada vez mais. Em 1989, foi criada a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), com o objetivo de fortalecer os movimentos indígenas na defesa dos direitos originários dos povos indígenas, das terras tradicionais e dos territórios indígenas no Brasil. A COIAB é uma organização regional que representa as organizações indígenas de 9 estados da região Norte do Brasil. Sua criação foi resultado da mobilização nacional dos povos indígenas.

Até os dias de hoje, os povos indígenas continuam se mobilizando para defender seus direitos originários e protestando contra o Marco Temporal.

E quando o Estado desrespeita as leis?

Depois de séculos de perseguições, os povos indígenas foram expulsos de maneira muito violenta de seus territórios. Essa expulsão, muitas vezes, foi promovida pelo próprio Estado brasileiro. Muitos povos indígenas foram dizimados, e aqueles que sobreviveram foram frequentemente obrigados a fugir de seus territórios para evitar serem assassinados.

Com a instituição da Constituição Federal, os povos indígenas passaram a ter direitos assegurados: o direito a seus territórios tradicionais, o direito de viver de acordo com seus conhecimentos e costumes, e o direito de participar do processo decisório. Foi o fim da tutela. A Constituição Federal obriga o Estado a demarcar as terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas, conforme estabelecido pelo Artigo 231. A Constituição e a Convenção 169 da OIT também exigem que o Estado consulte os povos indígenas sobre todas as suas medidas e ações.

No entanto, historicamente, a economia do Brasil sempre foi baseada na exploração de recursos naturais por pequenos grupos de pessoas influentes no Estado. Isso não mudou com a promulgação da Constituição Federal, e os mesmos poderosos que perseguiram e mataram os povos indígenas e os expulsaram de seus territórios agora buscam legalizar essas ações, como se dissessem: “Eu os expulsei à bala de suas terras e agora quero que elas não sejam demarcadas porque eles não estavam vivendo nessas terras em 1988”.

Se o Marco Temporal, que fere de morte e agride gravemente a Lei Maior do Brasil, que é a Constituição Federal, for aprovado, isso afetará diretamente e indiretamente os modos de vida dos povos indígenas. Esse Marco Temporal resultará em impactos ambientais e problemas sociais para os indígenas.

Um exemplo disso ocorre na Terra Indígena Yanomami, no estado de Roraima, onde as atividades de garimpo já contaminaram os igarapés e rios com mercúrio. Além disso, esses garimpos prejudicaram a saúde da população indígena Yanomami, resultando em muitas mortes por malária. Por esse motivo, os povos indígenas são totalmente contrários ao Marco Temporal.

Só de discutir no Poder Legislativo e no Poder Executivo essa tese (na Câmara, tramitou um Projeto de Lei, o PL 490, que foi aprovado e passou ao Senado, propondo, entre outras coisas, a validade de tão hedionda tese), o Estado Brasileiro já está ferindo direitos humanos de primeira geração, direitos humanos fundamentais e atentando contra o próprio Estado democrático de direito. O fato de essa tese absurda estar em discussão no Judiciário (no STF) e no Legislativo (tramitando no Senado) já causa grandes violências aos povos indígenas, uma vez que grupos interessados em tomar suas terras se sentem à vontade para invadir as áreas reivindicadas, cometendo assassinatos, perseguições e desmatamento.

Além disso, o Estado brasileiro está discutindo essa questão sem consultar os povos indígenas, desrespeitando, de forma deliberada, o que determinam a Constituição Federal, a Convenção 169 da OIT e as Declarações dos Direitos dos Povos Indígenas da Organização das Nações Unidas (ONU) de 2007 e da Organização dos Estados Americanos (OEA) de 2016.

O Estado brasileiro é signatário de todas essas convenções e declarações, e o simples fato de estar discutindo uma ameaça tão grave aos direitos dos povos indígenas sem consultá-los, conforme exigido pelas leis internacionais e nacionais, já configura um crime grave pelo qual deve ser responsabilizado legalmente.


Os artigos de opinião são de responsabilidade do seu autor.

Sobre o autor

Jatuta Wajãpi é um indígena da etnia Wajãpi, nascido e criado na Terra Indígena Wajãpi, que está localizada no Amapá. Ele é formado como Pesquisador Wajãpi e Agente Socioambiental Wajãpi, e já foi membro da diretoria do Conselho das Aldeias Wajãpi – Apina, participando ativamente da elaboração do Plano de Vida Wajãpi, do Plano de Gestão Socioambiental Wajãpi e do Protocolo de Consulta e Consentimento Wajãpi. Atualmente, ele é acadêmico do curso de Direito na Universidade Federal do Oeste do Pará.

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