A colonização do Brasil pelos portugueses foi motivada pela busca por riquezas e poder, levando à destruição dos territórios indígenas e à escravização de seus habitantes. Esse processo de exploração e dominação continua até hoje, com projetos de lei e a tese do Marco Temporal que buscam legalizar a destruição e o genocídio dos povos indígenas.

Vamos iniciar relembrando o que a história nos conta sobre o processo de ocupação das terras do Brasil pelos colonizadores. É sabido que os portugueses chegaram aqui por meio de uma expedição que tinha como foco a exploração e a busca por riquezas, especiarias, metais, entre outros, o que representava, naquela época, poder e domínio.

É importante refletir que o esgotamento dos recursos naturais na Europa foi certamente um motivo também, pois o capitalismo tem nos mostrado como essa demanda por áreas a serem exploradas e/ou destruídas ocorre. Assim que um território é devorado, surge a necessidade de buscar outros espaços para explorar, destruir, comer as terras e as florestas, conforme bem descreve Davi Kopenawa, liderança do povo Yanomami, em seu livro “A Queda do Céu”, ao se referir aos garimpeiros que devastam os territórios indígenas na Amazônia.

Vamos lembrar também que quando o colonizador chegou a essas terras, hoje chamadas de Brasil, encontraram aqui povos que habitavam estes territórios há milênios, que domesticaram paisagens, plantas e desenvolveram ciência e tecnologia com base na natureza, tendo suas culturas e crenças alimentadas pelas águas, florestas e pela terra. Humanos e florestas foram coevoluindo em uma relação harmoniosa, como evidenciam estudos arqueológicos, antropológicos, históricos, ecológicos, entre outros. Isso confirma o que nós, povos indígenas, já sabíamos: florestas como a Amazônia, que para muitos é apenas um “inverno verde”, são fruto dessa interação entre humanos e natureza. E não é difícil compreender isso, pois a humanidade tem demonstrado que, quando algo não se enquadra em sua cosmovisão, é facilmente devorado. Portanto, a manutenção das florestas e da terra é o sentido da vida, da cultura e da luta dos povos indígenas.

Foi graças aos povos nativos, à sua cosmovisão e aos seus conhecimentos que os colonizadores conseguiram sobreviver por aqui. Destaco o pensador indígena Ailton Krenak, que nos traz essa reflexão: “os invasores chegaram aqui muito doentes e famintos, praticamente mortos”, e foram os nossos que os alimentaram, cuidaram deles e os trouxeram de volta à vida. Em “agradecimento”, nossos territórios foram invadidos, nossas culturas destruídas e nossos corpos escravizados.

Foi graças aos povos nativos, à sua cosmovisão e aos seus conhecimentos que os colonizadores conseguiram sobreviver por aqui.

Raquel Tupinambá

A história de colonização e do genocídio dos povos indígenas no Brasil foi marcada por um intenso processo de perseguição e violência que visava e ainda visa a eliminação dos nativos de seus territórios para liberar espaços para a exploração. Essas práticas vêm se prolongando ao longo dos 523 anos desde o contato com os primeiros grupos que estavam aqui. É importante destacar que o contato entre aqueles que estavam aqui e os que chegaram não ocorreu de uma só vez, mas ao longo de séculos, pois somos diferentes povos habitando diferentes regiões.

Políticas integracionistas, como a cristianização, a proibição das línguas e dos costumes, a submissão a regimes de trabalho forçado, entre outras, foram constituídas com o objetivo de eliminar nossa relação com a mãe terra e nos transformar em força de trabalho, súditos da coroa portuguesa. Nesse sentido, podemos afirmar que a guerra do colonizador contra os povos indígenas foi e continua sendo pela terra e pela exploração dos chamados recursos naturais, ao mesmo tempo em que busca transformar essas populações em mão de obra, proletariado, conforme descrito por Karl Marx em “Acumulação Primitiva”. Como bem fala Ailton Krenak no primeiro episódio de “Guerras do Brasil”, “a intenção [era] de assaltar essa terra e escravizar essa gente”, referindo-se aos europeus que chegaram por aqui a partir do século XVI. O Brasil nasce de uma invasão, e essa invasão nunca teve fim. A guerra também é uma disputa de visões de mundo.

O Brasil nasce de uma invasão, e essa invasão nunca teve fim. A guerra também é uma disputa de visões de mundo.

Raquel Tupinambá

Para dominar e explorar os territórios indígenas, é necessário eliminá-los ou transformá-los em algo que já não seja indígena, modificando a visão de mundo e impondo a própria. Na perspectiva da subalternização, a transformação em algo diferente é utilizada como mecanismo de colonização, exigindo discursos de contrariedade ou inferiorização. A inferiorização também se configura como um mecanismo de vulnerabilização, com o propósito de tornar algo ou alguém dependente. O Estado e o dinheiro, por exemplo, são apresentados como “salvadores” que trarão dignidade, transformando-os em “cidadãos”. Isso parte de um sistema que tem em sua base o capitalismo, que ao mesmo tempo que inclui também exclui, e/ou marginaliza, nesse caso, o “pobre”, aquele que não tem nada além da sua força de trabalho, e logo irá se tornar uma “mão de obra barata”.

É nesse contexto que se insere a tese inconstitucional do chamado Marco Temporal, que está em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF). Segundo essa tese, os povos indígenas têm o direito de ocupar apenas as terras que eles ocupavam ou já estavam em disputa em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição. Na mesma discussão, há o Projeto de Lei (PL) 490/2007, aprovado na Câmara dos Deputados, mas que agora foi atualizado para o PL 2903/2023 do deputado Homero Pereira (MT), e está em tramitação no Senado. Esse projeto busca retirar os direitos assegurados com muita luta na Constituição de 1988, referentes ao reconhecimento, demarcação, uso e gestão das terras indígenas.

São inconstitucionais e absurdos os tais projetos de lei e a tese do Marco Temporal que o Estado brasileiro, as bancadas ruralistas que dominam o Congresso Nacional e o Senado querem criar para legalizar a destruição e o genocídio dos povos indígenas e populações tradicionais nos dias atuais. Essas propostas não trazem nada de novo em relação ao que tem acontecido ao longo dos 523 anos de colonização. Se temos direitos assegurados na Constituição do país e em instrumentos internacionais, é porque eles foram conquistados com muita luta e sacrifício dos nossos ancestrais. Mas então, por que os não indígenas também deveriam estar preocupados?

Os territórios indígenas e tradicionais são espaços onde as florestas ainda são conservadas e todos nós sabemos o importante papel que elas desempenham na qualidade do ar e da água. Portanto, elas são essenciais para a existência da vida humana no planeta. A regulamentação que permite a destruição desses territórios indígenas e tradicionais, promovida pelo Estado brasileiro (por meio do Marco Temporal, PL 490 e PL 2903), representa não apenas o genocídio dos povos indígenas, mas também um ataque à preservação ambiental e aos recursos vitais para todos nós.

Esse processo em curso de destruição das florestas, das águas, das populações e da biodiversidade está refletindo, por exemplo, na crise climática, na fome, na pobreza e nas pandemias, levando o planeta e a humanidade ao colapso. Estudos têm mostrado que a nossa geração é a última capaz de fazer alguma mudança para frear essa destruição. Nossas vidas estão em jogo e a humanidade precisa entender isso, enquanto ainda há tempo. A cultura e a cosmovisão indígena podem ser a solução, por isso temos chamado a atenção para o futuro ancestral. A continuidade da vida humana depende das escolhas que a humanidade fará.


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Sobre o autor

Raquel Tupinambá é mulher indígena, agricultora e militante pelos direitos indígenas. É uma liderança de seu povo e coordenadora do Conselho Indígena Tupinambá do baixo Tapajós Amazônia (CITUPI). Além disso, é doutoranda em Antropologia Social.

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