O sucesso da bioeconomia, assim como da citricultura, depende do conhecimento especializado. No entanto, ao contrário do modelo acadêmico clássico, onde os pesquisadores são avaliados pelos seus pares, no Fundo de Defesa da Citricultura (Fundecitrus), eles trabalham sob a supervisão indireta dos produtores para resolver problemas imediatos. Com uma ampla base de produtores associados e financiamento próprio, o Fundecitrus exemplifica um modelo de sucesso.
Em fevereiro de 2023, visitei o Fundo de Defesa da Citricultura (Fundecitrus), uma associação privada sem fins lucrativos que busca promover a sanidade, eficiência e sustentabilidade da citricultura brasileira. Para cumprir seus objetivos, realiza pesquisas científicas, desenvolve novas tecnologias, oferece treinamentos e produz informações, como a previsão de safra.
Sua sede fica em Araraquara, no interior de São Paulo, e sua estrutura física é formada por um conjunto de prédios baixos, pintados em tons de verde e distribuídos ao longo de um terreno amplo e arborizado. À primeira vista, chamou minha atenção a semelhança entre os laboratórios do Fundecitrus e aqueles que eu via quando andava pelos corredores do Massachusetts Institute of Technology (MIT). As salas brancas e bem iluminadas, ocupadas por cientistas que transmitem a mesma intensidade de propósito em sua busca por conhecimento.
Uma análise mais cuidadosa, porém, revela uma diferença fundamental entre a forma como essas entidades gerenciam suas pesquisas. No MIT e em outros locais que adotam o modelo acadêmico norte-americano, a pesquisa se organiza em torno de três diretrizes que encorajam os pesquisadores a agir como empreendedores intelectuais.
Primeiro, os pesquisadores avançam na carreira dependendo de sua capacidade de publicar artigos originais em periódicos de prestígio. Como se diz em inglês, é “publicar ou perecer”. Segundo, a qualidade da pesquisa é determinada exclusivamente por outros pesquisadores com expertise no tema. Conhecida como “avaliação por pares” (“peer review“), essa diretriz permeia as mais diversas rotinas acadêmicas, desde a defesa da tese até o processo de promoção a professor titular. E terceiro, cada pesquisador é responsável por arrecadar os recursos de que precisa para cobrir os custos de sua pesquisa.
Juntas, essas três diretrizes incentivam os pesquisadores a explorar o mercado de ideias de forma ampla e irrestrita, cada um buscando um espaço onde fincar sua bandeira. Ao mesmo tempo, elas protegem o pesquisador de influências externas. Como diz uma amiga, professora na NYU, “professor não tem chefe. Pelo contrário, cada um é o CEO de sua própria microempresa”.
No Fundecitrus, a lógica é outra, centrada na missão. O sucesso de seus pesquisadores não depende do número de publicações de cada um, mas de sua capacidade de resolver os problemas que afligem o setor, conforme definido pelos produtores. A qualidade da pesquisa não é auferida exclusivamente por outros especialistas, mas pelo impacto que ela tem nas fazendas. E a pesquisa não é financiada por editais concorridos, mas pela própria organização, que decide como alocar seu espaço e orçamento.
Olhando sob esse ângulo, o Fundecitrus lembra um laboratório corporativo, como o famoso PARC da Xerox ou o X da Google, onde os pesquisadores são funcionários em uma hierarquia. Mas essa analogia também não funciona. Os laboratórios corporativos buscam desenvolver conhecimento que beneficia apenas sua empresa e pode ser mantido sob seu domínio, seja via sigilo ou registro de patente. Em contraste, o Fundecitrus produz conhecimentos que são compartilhados com todo o setor.
Esse tipo de recurso compartilhado setorial é de enorme valia. Na Amazônia, a sua escassez ajuda a explicar porque as empresas ligadas à bioeconomia têm tanta dificuldade em prosperar. Produzi-lo, porém, não é fácil. Os governos não costumam ter a motivação política para prover um recurso que vai beneficiar apenas um setor. E eles tampouco têm a experiência de negócio para formular as perguntas certas. Em contraste, as empresas costumam ter o motivo e a experiência, mas nenhuma delas tem incentivo suficiente para prover um recurso que vai beneficiar a todos, até seus concorrentes.
Para resolver esses problemas, os visionários que criaram o Fundecitrus orquestraram um acordo pré-competitivo de âmbito setorial. No Brasil, a maior parte das frutas cítricas são laranjas, e a maior parte delas são processadas por três grandes empresas que produzem e exportam o suco. Quando uma dessas empresas compra uma caixa, ela deduz R$0,08 do valor devido ao produtor, complementa com outros R$0,08 de seu dinheiro e envia o total para o Fundecitrus. Hoje, a caixa de laranja vale cerca de R$38, então a contribuição é de aproximadamente 0,2% por parte do produtor e outros 0,2% por parte da indústria. A alíquota é baixa, mas o volume processado é enorme. Em 2022, produtores e industrias repassaram R$ 30 milhões ao Fundecitrus.
Com tanto dinheiro em jogo, os produtores têm interesse em se engajar na associação. E os produtores maiores e mais engajados também têm interesse em atender os menores ou mais recalcitrantes já que as pragas e doenças que ameaçam suas propriedades não respeitam cercas nem fronteiras. Desse modo, a entidade atrai uma base ampla de associados, em que cada um contribui com um valor proporcional à sua produção.
Para fechar o círculo, a associação adota regras e procedimentos robustos para consolidar as preferências dos seus associados em uma lista de prioridades compartilhadas, sem causar cisões desnecessárias. Nesse sentido, a entidade não permite que produtores e indústrias discutam ou tentem manipular o preço da laranja, que é decidido pelo mercado. Além de ilegal, esse tipo de discussão criaria divisões internas difíceis de superar. Como explicou o Dr. Antonio Amaro, um dos principais articuladores responsáveis pela criação do Fundecitrus, “o estatuto foi pensado e organizado de forma a dificultar que pautas sobre preço ou contratuais fossem temas nos corredores das reuniões.” Operando sob esses parâmetros, o Fundecitrus cria e mantém o setor num equilíbrio de alta performance, em que todos contribuem e todos se beneficiam.
Podemos imaginar um universo paralelo onde os produtores de laranja e as indústrias processadoras não conseguem chegar num acordo para criar o Fundecitrus. Nesse universo, a chegada do cancro cítrico e outras doenças devastam a citricultura nacional. Em outra versão dessa história, setores que poderiam ter enorme destaque não chegam a nascer ou não conseguem prosperar. Na prática, não é preciso olhar longe para achar casos assim: são esses os cenários que observamos na Amazônia hoje, quando olhamos para tantos dos produtos compatíveis com a floresta, presos em um equilíbrio indesejável, onde quase ninguém contribui para gerar recursos compartilhados, ninguém se beneficia e todos sofrem para avançar.
O desafio é migrar desse equilíbrio indesejável para um equilíbrio de maior performance. Uma transição difícil, mas possível de ser obtida.
Os artigos de opinião são de responsabilidade do seu autor.