O município de Portel, no Pará, está no epicentro de uma discussão sobre a relação entre projetos de mercado de carbono, áreas públicas e territórios coletivos na Amazônia.
O mercado voluntário de crédito de carbono aumentou globalmente nos últimos anos, impulsionado por empresas interessadas em compensar suas emissões de gases do efeito estufa. Em 2021, esse mercado quadruplicou em relação ao ano anterior e atingiu US$ 1,9 bilhão em transações, de acordo com o principal levantamento deste setor feito pela iniciativa Ecossystem Marketplace. As principais atividades que geram esses créditos de carbono voluntário estão no setor de floresta e mudança de uso do solo, que representaram 67% do valor comercializado em 2021.
Porém, mesmo com esse aumento substancial, o mercado voluntário de crédito de carbono ainda é pequeno diante de seu potencial. De fato, seu faturamento equivale ao volume anual de exportações de pimenta do reino! Outros mercados de produtos compatíveis com a floresta até superam esse tamanho. Mas é justamente seu potencial de expansão que tem atraído investidores e novas empresas para esse ramo.
Se por um lado esse mercado pode contribuir financeiramente com a manutenção e restauração de florestas, tem sido alvo de críticas sobre a capacidade de entregar resultados confiáveis de redução de emissões de carbono. Também crescem denúncias ligadas a violações de direitos em territórios de interesse para geração de créditos de carbono voluntário. Um exemplo recente está acontecendo no município de Portel, no Pará.
No final de janeiro, o Ministério Público do Estado do Pará (MPPA) organizou uma audiência pública em Portel para tratar de denúncias de irregularidades em projetos de mercado voluntário de crédito de carbono. Alguns casos já foram objeto de investigação jornalística em 2022. Dentre os problemas, destacam-se: projetos sobrepostos a terras públicas sem autorização do poder público, ausência de consulta livre prévia e informada de comunidades envolvidas nos projetos, condições desvantajosas de negociações entre empresas e comunidades.
A audiência contou com a participação de representantes do poder público estadual, de comunidades, do poder público municipal e de empresas ligadas ao mercado de carbono voluntário. Em especial, o governo estadual se fez presente com diferentes órgãos, como a Procuradoria Geral do Estado (PGE), o Instituto de terras do Pará (Iterpa), a Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas) e o Instituto de Desenvolvimento Florestal e da Biodiversidade (Ideflor-Bio). A ata da reunião já foi disponibilizada pelo MPPA.
Um dos motivos dessa mobilização do estado é a existência de projetos de carbono sobre projeto de assentamento agroextrativista (PEAEX) estadual, mas que não tiveram autorização do governo. Outro motivo é o uso indevido de Cadastro Ambiental Rural (CAR) como comprovação fundiária em projetos. Poucos dias após a audiência, a Semas anunciou o cancelamento de 219 inscrições de CAR irregulares ligadas a projetos de carbono em Portel. Também suspendeu outras 735 inscrições de CAR com indícios de irregularidades.
Outras iniciativas nesse caso merecem destaque. Primeiro, antes da audiência em Portel, o Iterpa criou uma Mesa de Diálogo sobre Assentamentos Coletivos Estaduais, na qual pretende discutir regulamentação de atividades econômicas nesses territórios usando o caso de Portel como piloto. Segundo, a Defensoria Pública do Estado criou um Grupo de Trabalho de Atendimento Sustentável e Créditos de Carbono, para acompanhar esse tipo de demanda.
Toda essa movimentação de órgãos públicos é importante para reverter violações de direitos e prevenir que novos problemas ocorram. Porém, é fundamental que o governo estadual leve a discussão sobre projetos de carbono em áreas estaduais para o processo em curso de elaboração do sistema jurisdicional de REDD+ do Pará. Não se trata de regular iniciativas de mercado voluntário de forma geral, tema que foge da competência do governo estadual. Mas o estado precisa definir como essas relações ocorrerão em áreas do governo estadual, sejam elas concedidas a comunidades ou não.
Um sistema de REDD+ precisa definir qual será o órgão estadual responsável pelo tema. O caso de Portel mostra que vários órgãos se mobilizaram, mas é essencial que haja um ponto focal coordenando a atuação estadual. Também deve ser parte desse sistema a criação de uma ouvidoria para receber e encaminhar tratamento de denúncias. Outra necessidade é viabilizar uma estrutura de assistência jurídica e técnica para comunidades presentes em territórios coletivos de titularidade do estado.
Nesse tema, também cabe acompanhar a discussão sobre a Medida Provisória 1.551/2022, que traz algumas disposições aplicáveis a transações de mercado de carbono em florestas públicas. Esta MP altera a lei de gestão de florestas públicas e permite a comercialização de crédito de carbono como parte de uma concessão florestal. A MP copiou alguns trechos do Projeto de Lei 5518/2020, que traz alterações mais estruturantes para aperfeiçoar o modelo de concessão florestal.
Porém, no tema de carbono, há pelo menos uma diferença importante entre a MP e o PL 5518/2020: o PL propõe criar uma categoria de concessão para conservação, voltada a atividades de manejo de áreas naturais com foco na conservação de serviços ecossistêmicos e da biodiversidade. Já a MP não prevê esse tipo específico, o que leva a entender que a comercialização de créditos precisaria estar vinculada a uma concessão para manejo florestal. A diferença é importante, já que pode impedir que o poder público faça uma concessão apenas focada em serviços ambientais.
Há outros casos surgindo na Amazônia, similares aos de Portel, de conflitos e violações de direitos ligadas a projetos de carbono em áreas coletivas. É o momento de definir as medidas governamentais necessárias para evitar que o mercado de carbono florestal produza efeitos perversos para a população que protege a floresta.
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