É preciso encontrar nova lógica de desenvolvimento rural para as comunidades empobrecidas que mirem sua inclusão em cadeias locais fortes, como fornecedoras de insumos.

O Project Drawdown, organização que agrega inteligência para os esforços de redução da emissão de gases de efeito estufa, criou um ranking de soluções de descarbonização que pondera custo, benefício e escalabilidade. Ali, nota-se que 19 das 100 iniciativas mais potentes para atenuar as mudanças climáticas estão relacionadas à alimentação, à agricultura e ao uso da terra. Nesse contexto, o bom uso do solo agrícola é uma frente de ação imediata, acessível e escalável, que pode contribuir para rápida evolução do Brasil na agenda climática.

Nessa seara, o papel do Brasil começa pela ambição básica de zerar o desmatamento ilegal e frear o fogo, que juntos respondem por mais de 50% de nossas emissões. Há séculos o desmatamento e as queimadas marcam nossa relação com a floresta e prejudicam o país, tanto internamente quanto em nossa inserção internacional.

Ao mesmo tempo, precisamos compreender a enorme diversidade de contextos da realidade rural brasileira, em que florestas coexistem com agricultura e pecuária, e onde comunidades tradicionais, extrativistas e indígenas coabitam com agricultores familiares, e são vizinhos da agricultura empresarial de grande escala. Vivem lado a lado produtores familiares em pobreza extrema, que cultivam para subsistência, e imensas fazendas de alta tecnologia, voltadas à exportação e pautadas pela lógica reducionista do agronegócio mundial de commodities.

Programas e ações para o desenvolvimento de territórios no espaço rural brasileiro devem levar em conta a ampla diversidade dos atores presentes e a complexidade que ela traduz. É preciso identificar oportunidades que sirvam ao propósito de inserir a agricultura familiar em fluxos potentes, geradores de demanda firme e perene, que promovam renda e prosperidade. 

Nessa frente tem destaque a adoção de sistemas integrados, agroflorestais e regenerativos, capazes de intensificar o uso da terra, valorizar sinergias entre as culturas, otimizar o uso de fertilizantes e defensivos, acumular matéria orgânica no solo e aumentar sua capacidade de retenção de água. Ao longo dos ciclos agrícolas, o acúmulo desses benefícios aumenta a produtividade e reduz custos, o que torna essa tecnologia atrativa para o pequeno produtor rural – e também para a agricultura de média e grande escalas.

O Brasil deve tornar dominante a agropecuária de baixo carbono, reduzir a emissão de metano entérico e sequestrar matéria orgânica no solo agrícola, que captura até 20 toneladas de CO2/ano por hectare bem manejado.

O Brasil deve tornar dominante a agropecuária de baixo carbono, reduzir a emissão de metano entérico e sequestrar matéria orgânica no solo agrícola, que captura até 20 toneladas de CO2eq/ano por hectare bem manejado. Isto é, 10 milhões de hectares de agricultura tropical regenerativa têm potencial de reter algo como 4Gton de CO2 ao longo de 20 anos.

Inúmeros modelos de sistemas agroflorestais vêm sendo implantados em diferentes partes do planeta, combinando culturas perenes como coco, dendê, seringueira, cacau e café, com plantas de ciclo curto ou médio, como mandioca, banana, milho, feijão e pimenta-do-reino, entre muitas outras. Nessa década, está em curso um alinhamento de interesse entre governos, empresas agrícolas, indústria, tradings, consumidores, empreendedores e investidores, que buscam promover cadeias rastreáveis, rentáveis, de baixo impacto socioambiental e que sequestrem carbono no solo agrícola.

Modelos de integração testados em escala-piloto estão sendo validados em larga escala no Brasil, como as variações de ILPF (integração lavoura, pecuária e floresta). Segundo a Rede ILPF, o Brasil já tem mais de 1 milhão de hectares de sistemas IPF, em piquetes de eucalipto, capim e boi, além de 14 milhões de hectares de ILP, na simples e rentável rotação entre soja, milho e boi. 

O desafio atual é validar sistemas agroflorestais de alta rentabilidade, adaptáveis a diferentes contextos da condição rural brasileira, moldáveis à ampla gama de combinações entre clima, solo, estrutura fundiária e mercado consumidor, que possam alcançar escala de milhões de hectares. Esses sistemas, ao impulsionar cadeias produtivas de base agrícola, serão capazes de gerar um fruto de longa maturação: o carbono de impacto socioambiental, produto cobiçado no nascente mercado de créditos de carbono. O Brasil tem tudo para liderar esse mercado.

Belterra Agroflorestas
Sistemas agroflorestais implementados pela Belterra Agroflorestas.

No entanto, programas de desenvolvimento comunitário rural ou extrativista, via de regra, miram as cadeias no sentido do consumo, não do insumo. Ocupam-se de superar infindáveis obstáculos regulatórios, de qualidade, logística, qualificação, certificação, estrutura e outras barreiras de acesso a mercados mais exigentes, que, em tese, remunerariam melhor o produtor rural ou extrativista. Essa abordagem é conhecida, e os resultados também são: projetos de pequena escala com altíssimo custo de implantação e administração, casos pontuais de sucesso e falhas recorrentes de viabilidade quando a verba dos projetos termina. 

É preciso encontrar nova lógica de desenvolvimento rural para as zonas mais empobrecidas do território brasileiro, que se adapte às restrições de ordem geográfica e logística, reduza conflitos, conecte o pequeno produtor a cadeias de grande escala, fortaleça o tecido social e abra perspectiva de prosperidade em prazo razoável. Para tangibilizar esse tipo de abordagem, vale a pena recorrer à mais brasileira das commodities: a mandioca. 

É preciso encontrar nova lógica de desenvolvimento rural para as zonas mais empobrecidas do território brasileiro, que se adapte às restrições de ordem geográfica e logística, reduza conflitos, conecte o pequeno produtor a cadeias de grande escala, fortaleça o tecido social e abra perspectiva de prosperidade em prazo razoável.

O processamento difuso da mandioca em casas de farinha, centrais de produção e indústrias oferece ótima oportunidade de aproveitamento agrícola dos resíduos e efluentes, como fertilizantes, defensivos naturais e condicionadores de solo. O tratamento da manipueira gerada numa casa de farinha pequena, de 1ton/dia, tem demanda bioquímica por oxigênio (DBO) equivalente à de 200 habitantes urbanos.

Na escala industrial, os 6m³ de manipueira concentrada gerada numa fábrica de farinha de médio porte, de 20ton/dia, exige tratamento equivalente ao de uma cidade de 20 mil habitantes. A manipueira é muito rica em potássio e após tratamento simples pode ser aplicada como adubo líquido, no solo ou via foliar.

Se tomarmos o Pará como exemplo, estima-se que a manipueira gerada no processamento das 4 milhões de toneladas de raiz ali produzidas por ano equivale a 8 mil ton de ureia, 6 mil ton de KCl, 4 mil ton de superfosfato simples e 6 mil ton de MgSO4, somadas. Considerando apenas o N, esse volume de fertilizante é suficiente para adubar 30 mil hectares de lavoura de cacau, por exemplo. A área total de lavoura de cacau no Pará é de 150 mil hectares.

Outro aproveitamento impactante da mandioca é o uso da rama para nutrição animal. Aqui vale outra extrapolação inspiracional, usando como contexto um dos municípios mais miseráveis do Maranhão: caso o cultivo da mandioca com foco exclusivo na parte aérea se espalhasse pelos 30 mil hectares de pastos severamente degradados de Vila Nova dos Martírios, a silagem resultante poderia alimentar 130 mil vacas em ordenha por ano. O total de vacas em ordenha no Maranhão é de 560 mil cabeças. Vale ressaltar que a silagem das ramas e folhas de mandioca chega a 15% de proteína bruta, contra apenas 6% de PB da silagem de milho.

Essas e outras oportunidades, em contextos específicos do Brasil rural, podem inserir a agricultura familiar em cadeias locais fortes, como provedora de insumos agrícolas. É uma nova abordagem, que não exclui as frentes já em curso, mas que abre um horizonte mais acessível, mais rápido, de menor exigência técnica, mais consoante com a condição atual das comunidades rurais de baixa capacitação. Parafraseando Einstein, insanidade é fazer sempre as mesmas coisas e esperar por resultados diferentes.


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Sobre o autor

Eduardo Roxo é sócio-fundador da Atina, consultor em Agroflorestas, co-lider da FT de Bioeconomia da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura e presidente do Conselho da Inocas Amazônia

E-mail: [email protected]