Todo mundo vai sofrer os impactos causados pelas mudanças climáticas, mas alguns grupos são mais vulneráveis e tendem a ser mais atingidos. Cabe a todos nós agirmos.

Um célebre verso de Marília Mendonça traduz de forma simples e direta as principais conclusões do novo relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC): “Ninguém vai sofrer sozinho, todo mundo vai sofrer!”. Estamos na era da sofrência climática! E essa sofrência é uma mistura de sofrimento com os impactos de eventos extremos cada vez mais frequentes, com a carência de medidas de adaptação e mitigação.

Os dados do relatório do IPCC impressionam. Por exemplo, quase metade da população mundial já vive em situação altamente vulnerável às mudanças climáticas. Os riscos climáticos já estão presentes em todas as regiões do planeta, e mortes prematuras aumentarão mesmo no curto prazo devido a alterações climáticas e eventos extremos.

Mas assim como ocorre na sofrência amorosa, na sofrência climática nem todos sofrerão da mesma forma. Há sempre grupos mais vulneráveis, que, no caso das mudanças climáticas, serão as populações de regiões mais pobres, com desafios de governança, acesso limitado a serviços básicos e exposição a conflitos violentos. Também estão nesta condição aqueles com meios de subsistência mais sensíveis a fatores climáticos, como agricultores familiares e ribeirinhos. 

O IPCC também destaca a maior vulnerabilidade de povos indígenas e populações tradicionais. Tais grupos já sofrem historicamente com desigualdade socioeconômica e, portanto, tendem a sofrer os impactos climáticos de forma mais intensa. Para eles, os cientistas alertam sobre os riscos de insegurança alimentar e de impactos nos ecossistemas dos quais dependem diretamente pelo seu modo de vida.

Em situações de eventos climáticos extremos, todos os grupos citados acima tendem a sofrer mais impactos e a terem mais dificuldade de se recuperar. Para uma melhor noção do que isso significa na prática, o relatório do IPCC aponta que entre 2010-2020 a mortalidade por cheias, secas e tempestades foi 15 vezes superior em regiões altamente vulneráveis comparada a regiões com vulnerabilidade muito baixa!

Os cientistas alertam que os impactos e riscos climáticos estão se tornando cada vez mais complexos e difíceis de lidar. Alguns já são inevitáveis no curto prazo, considerando o nível de acúmulo de gases do efeito estufa (GEE) na atmosfera. 

Porém, ainda temos chance de evitar os cenários de maiores impactos, desde que aceleremos nos próximos anos as medidas para um planeta com mais resiliência climática, especialmente até 2030. Para isso, teremos que combinar ações de redução de emissões de gases-estufa com outras mais intensas de adaptação aos impactos já inevitáveis. 

No Brasil, a conservação e restauração de florestas são duas das principais formas de combinar mitigação e adaptação climática, considerando que nossa principal fonte de emissões é a perda de florestas. O IPCC ecoa dezenas de estudos destacando que o reconhecimento dos direitos territoriais dos povos indígenas é fundamental nesse esforço de adaptação envolvendo recursos florestais.

No Brasil, a conservação e restauração de florestas são duas das principais formas de combinar mitigação e adaptação climática.

De fato, a forma como os povos indígenas gerem seus territórios faz com que essas sejam áreas menos degradadas e mais protegidas. O relatório reconhece a importância de utilizar o conhecimento tradicional, aliado ao conhecimento científico, para aumentar a chance de sucesso de medidas de adaptação. Da mesma forma, enfatiza a necessidade da participação de organizações de povos indígenas e comunidades tradicionais nos processos de tomada de decisão sobre ações climáticas.

Mas a realidade brasileira nesse momento vai na direção oposta das constatações dos cientistas. O governo federal e parte do Congresso Nacional tentam reduzir direitos indígenas, seja pela paralisação do reconhecimento de territórios ainda não demarcadas ou defendendo a exploração econômica de forma incompatível com esses territórios. 

Recentemente, a atenção retornou ao Projeto de Lei n.º 191/2020, que visa a exploração mineral, incluindo garimpo, e geração de energia hidrelétrica em terras indígenas. Ele é parte do chamado Pacote da Destruição, formado por vários projetos de lei que colocam em risco direitos socioambientais, incluindo tentativa de legalização de grilagem de terras e enfraquecimento do licenciamento ambiental.

O PL 191, de iniciativa do Poder Executivo, é repleto de inconstitucionalidades, como fica evidente na leitura de notas técnicas do Ministério Público Federal e do Instituto Socioambiental.

O PL 191, de iniciativa do Poder Executivo, é repleto de inconstitucionalidades, como fica evidente na leitura de notas técnicas do Ministério Público Federal e do Instituto Socioambiental. Ele enfraquece os direitos constitucionais dos povos indígenas e pode levar a mais desmatamento e poluição nesses territórios. Além disso, a mera expectativa de que um PL como esse possa ser aprovado acaba contribuindo para mais pressão sobre esses povos. 

Uma dessas pressões é o garimpo que o PL 191 pretende autorizar. A área de garimpo em terras indígenas aumentou 495% em dez anos, trazendo contaminação e degradação. A tentativa de permitir essa atividade nesses territórios afronta diretamente a Constituição, pois como explica a nota técnica do Instituto Socioambiental, o próprio texto constitucional já pré-exclui a possibilidade de atividade garimpeira em terra indígena (Artigo 231, § 7º da Constituição Federal de 1988). Ou seja, é juridicamente impossível que um projeto de lei autorize algo que já é vedado pela Constituição. 

Por isso, é necessário ampliar a mobilização para barrar os PLs do Pacote da Destruição, a exemplo do Ato em Defesa da Terra, que ocorre em 9 de março em Brasília. Sob a liderança de Caetano Veloso, diversos artistas e organizações da sociedade civil se reunirão para chamar a atenção aos riscos dessas propostas e pressionar congressistas a rechaçá-las. 

Como temos um governo inimigo da sustentabilidade e da segurança climática dos brasileiros, cabe a todos nós agirmos para impedir retrocessos socioambientais, na tentativa de sofrermos menos impactos futuros.


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Sobre o autor

Advogada, mestre e doutora em Ciência do Direito pela Universidade Stanford (EUA). Nascida e residente em Belém (PA), é pesquisadora associada do Imazon, atuando há 18 anos para o aprimoramento de leis e políticas ambientais e fundiárias para conservação da Floresta Amazônica.

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