Projeto vai levar os primeiros protótipos de fábricas-laboratórios para a Amazônia no primeiro trimestre de 2022. O objetivo é ampliar a capacidade das comunidades de agregar valor aos produtos da biodiversidade.

A Iniciativa

Quem é
projeto que associa alta tecnologia e conhecimentos tradicionais para fomentar a bioeconomia e negócios que mantenham a floresta em pé
Quem faz
pesquisadores brasileiros, Atelier Marko Brajovic, Omega7 Systems e outros parceiros
O que faz
capacita membros das comunidades locais e instala minifábricas de produtos oriundos da biodiversidade da floresta para aumentar seu valor agregado
Onde atua
Amazônia brasileira

A Amazônia exerce um papel-chave na regulação do clima global e na manutenção da biodiversidade e de culturas ancestrais únicas no mundo. Por isso, as altas taxas de desmatamento na floresta reacendem a necessidade de mudanças urgentes no modelo dominante de desenvolvimento socioeconômico, hoje baseado em agronegócio, geração de energia, mineração legal e criminosa. A demanda é reforçada por governos e outros setores em acordos globais para a proteção de florestas e de povos indígenas. 

O cenário pede alternativas de produção capazes de conservar, sustentar e desenvolver a Amazônia aliando tecnologias inovadoras aos conhecimentos de seus povos. Daí surgiu o Amazônia 4.0, iniciativa vinculada a uma “nova revolução industrial” e que associa vários setores para estudo, aproveitamento e divulgação do potencial da floresta como fonte de recursos econômicos.

Uma das frentes do Amazônia 4.0 são as fábricas-modelo, que serão instaladas para a produção de insumos que aproveitam a diversidade biológica da Amazônia. Os primeiros protótipos das fábricas começam a chegar à região no início de 2022. Serão polos de capacitação comunitária sobre economias não destrutivas. A outra frente são as escolas de negócios, em parceria com o Instituto Conexsus. Um documentário sobre o empreendimento, lançado este ano, foi premiado em festivais na Europa e Estados Unidos.

Para explicar o projeto, o PlenaMata conversou com seu diretor-científico, o biólogo Ismael Nobre, doutor em Dimensões Humanas dos Recursos Naturais pela Universidade do Colorado (Estados Unidos) e pós-doutor em Estudos de População pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Para ele, usar tecnologias de ponta para produzir e transportar produtos derivados da biodiversidade é um dos melhores caminhos para a proteção da Amazônia.

A conversa aconteceu no mesmo dia em que o Brasil governado por Jair Bolsonaro divulgou um novo recorde de desmatamento na Amazônia, com mais de 13,2 mil km² perdidos entre agosto de 2020 e julho deste ano. 

É urgente criarmos uma alternativa econômica que detenha a “marcha da insensatez” do uso destrutivo da floresta, que está nos levando a uma crise climática e ecológica global sem precedentes. Temos que valorizar a floresta preservada para equilibrar o jogo com as commodities e outras economias convencionais.


Ismael Nobre, diretor-científico do Amazônia 4.0

PlenaMata – Por que a Amazônia deve ser o grande palco desta “revolução industrial”, que alia alta tecnologia e conhecimentos ancestrais para mudar o modelo produtivo-extrativista predominante?

Ismael Nobre – A Amazônia é um local privilegiado para isso por sua própria natureza, por sua extrema biodiversidade de onde podem ser extraídos produtos de interesse de toda a sociedade. Alguns já são conhecidos no Brasil e no mundo, como o açaí, outros precisam de mais pesquisas e investimentos para ampliar seu uso. Mas todos têm grande potencial para uma apropriação inteligente desses recursos. 

Também é urgente criarmos uma alternativa econômica que detenha a “marcha da insensatez” do uso destrutivo da floresta, que está nos levando a uma crise climática e ecológica global sem precedentes. Temos que valorizar a floresta preservada para equilibrar o jogo com as commodities e outras economias convencionais.

Isso lembra a “economia do conhecimento da natureza”, como propôs de forma pioneira a geógrafa Bertha Becker (1930-2013). Como seria o balanço entre conservação e produção neste novo modelo para o desenvolvimento da Amazônia?

O Amazônia 4.0 começou como uma “terceira via amazônica”, justamente tentando fugir da dicotomia entre conservação e produção. O desenvolvimento sustentável recebeu investimentos políticos e financeiros nos últimos 30 anos, porém, isso não mudou as ameaças à existência da floresta, porque essas iniciativas sempre mantiveram a Amazônia como uma fornecedora de matérias-primas cuja agregação de valor acontece em outras regiões, como nas capitais e grandes cidades. Isso mantém um típico modelo de colônia. 

Queremos mudar essa realidade e agregar o maior valor possível na origem da matéria-prima, ou seja, no interior da Amazônia. Levaremos indústrias e outros modelos de desenvolvimento a locais onde essa perspectiva nunca chegou, como em áreas onde apenas chegam, por exemplo, atravessadores para adquirir castanhas e outros produtos primários. Com essas mudanças, por exemplo, o valor médio do quilo do cacau produzido na floresta pode passar de R$ 15 para até R$ 300, ampliando a distribuição de renda e a qualidade de vida na região. Isso tem que beneficiar quem bem maneja e mantém a floresta viva. 

Como funcionarão os laboratórios criativos e as escolas de negócios da floresta, dois braços fortes da iniciativa? 

Preciso explicar que começamos o planejamento em 2017, nessa vertente de agregar valor à produção florestal com tecnologias inovadoras para a região e, em 2018, começamos a estudar as cadeias produtivas do cacau e do cupuaçu, para a produção de chocolate e cupulate, o chocolate feito com cupuaçu.

Teste das tecnologias usadas no projeto Amazônia 4.0 com líderes comunitários da região. Produto inicial foi o cacau. Credit: Daniel Mira/NOUS Comunicação Consciente Credit: Daniel Mira/NOUS Comunicação Consciente

A construção do maquinário e do software começou em 2020, quando veio a pandemia de Covid-19. Protótipos foram construídos em São José dos Campos (SP), onde comunidades amazônicas participaram de capacitações prévias. 

Vencido este atraso, no primeiro trimestre de 2022, o laboratório-fábrica de chocolate iniciará sua rota por comunidades no Pará, no quilombo Moju-Miri, na Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns, um povoado às margens do Rio Acará, e em um assentamento da reforma agrária próximo à Floresta Nacional do Tapajós, em Belterra. Nessas regiões são produzidos cacau e cupuaçu. A tecnologia pode ser estendida para vários outros produtos. De início, a estrutura transitará pelas comunidades para sua capacitação, por dois meses em cada local. Elas precisam de alternativas para que não migrem para economias convencionais como a do gado, como ocorreu na Reserva Extrativista Chico Mendes, no Acre.

Como conseguirão escoar a produção em meio à Amazônia, onde regiões ainda são carentes de infraestrutura? 

Cada caso é um caso. A região do Rio Acará é próxima da capital Belém, e o transporte poderá ser feito por barco ou caminhão e, dali, de avião. De um dia para o outro, o chocolate da Amazônia pode ser comercializado em São Paulo. Algumas companhias aéreas têm, inclusive, apoiado a distribuição de artesanato da Amazônia. 

Da região de Belterra também se escoam produtos pelo meio viário. De outros pontos, demora até seis horas de barco para o escoamento da produção local. O futuro sustentável da Amazônia depende também de investimentos em infraestrutura associada às novas economias, como aeroportos de qualidade que favoreçam uma produção e comércio com valor agregado que ajudarão a manter a floresta em pé. Mas isso depende de muitos atores além do Amazônia 4.0. 

a indústria 4.o e como ela pode agregar valor à floresta

– Adotar técnicas para aumentar a durabilidade dos produtos, usando técnicas de liofilização, gerando material de alto valor para a fabricação de sorvetes, iogurtes etc. O pó de cupuaçu, de açaí e de camu-camu, que mantêm a quase totalidade das qualidades nutricionais do alimento original, são exemplos disso;
– Uso de energia solar nas comunidades amazônicas, onde o índice de radiação solar é bem mais elevado do que em países europeu, a custos razoáveis e sem que haja nenhum prejuízo à floresta, seus rios e habitantes;
– Conectar toda a Amazônia por meio de um satélite brasileiro geoestacionário de telecomunicações que já existe e pode prover banda larga a todas as localidades;
– Capacitar membros das comunidades locais e estudantes para trabalhar em parceria com professores, pesquisadores, empreendedores ligados a startups e especialistas em fomento e apoio a pequenos negócios e negócios sustentáveis.

Fonte: Futuribles

Quais as tecnologias que estão associadas à produção? 

As fábricas-laboratórios são de fácil manuseio, terão energia solar – uma fonte limpa – e purificarão a própria água para a produção. Toda a cadeia será assegurada por blockchain e rastreada digitalmente da floresta ao consumidor final. Embalagens serão adequadas às condições climáticas da Amazônia. Também estamos estudando o uso de drones para transportes e entregas na região, como já ocorre nos Estados Unidos e outros países. 

Quem sustenta e quais são os principais parceiros do Amazônia 4.0? 

Até agora, nossa maior fonte de recursos são instituições filantrópicas, como os institutos Humanize, Arapyaú e Clima e Sociedade, a Good Energies Foundation, da Holanda, e outras como o Banco Itaú, as embaixadas da França e da Austrália e a empresa Aldo Solar, que doou painéis solares para as fábricas-laboratórios. Também firmamos parcerias com instituições como a Universidade de São Paulo (USP), para a tecnologia de rastreamento, e o Instituto Conexsus, para que as comunidades possam transformar projetos-piloto em negócios próprios. 

O desmatamento e os desinvestimentos em ciência e tecnologia crescentes não adiam perigosamente essa mudança de paradigma do desenvolvimento socioeconômico da Amazônia? 

A Amazônia 4.0 é uma resposta a esse desafio. Mesmo que ainda não estivéssemos diante desse panoramas político e de desmatamento tão críticos e da ameaça do ponto de ruptura(+), já sabíamos em 2017 que a implantação de infraestrutura e o desmate estavam fragmentando fortemente a vegetação natural. 

Já tínhamos em 2017, quando começamos a pensar o Amazônia 4.0, esse prognóstico de insustentabilidade do desenvolvimento regional, ampliado pela crise climática global. A floresta preservada tem valor, não há dúvida, mas, no cenário atual, parece não ter valor e está sendo convertida de forma que não pode mais continuar. 

Por isso, experiências pontuais bem-sucedidas de produção sustentável precisam ganhar escala, inclusive em benefício das 29 milhões de pessoas que vivem na região. 

Acordos firmados na COP26 pedem a proteção da floresta e de povos ancestrais. A Comissão Europeia quer produtos livres de desmatamento. Relatório da OMC amarrou o desmate ao comércio internacional. Mas o Brasil segue batendo recordes de destruição da Amazônia. O que falta para cair a ficha de que não há mais espaço para economias que destroem a floresta e outros ecossistemas?

Nosso trabalho também envolve análises desse tipo de cenário. Um movimento que teria ajudado em muito iniciativas como o Amazônia 4.0 era o Fundo Amazônia que –  evito dar muitos adjetivos para isso – perdeu sua funcionalidade. Já havia debates para um planejamento conjunto e investimentos de grande porte para o projeto. Isso seria como bola de neve: depois de começar a rolar, com estudos e bons exemplos de uso, automaticamente ganharíamos escala. Mas é preciso romper paradigmas. 

Um deles seria reconhecer que a “natureza é tecnologia”. E não falta conhecimento: a Amazônia tem pelo menos 450 espécies com uso conhecido e estudado pela ciência. Também é necessário ampliar o debate com outros setores, como o financeiro, para redesenhar modelos de investimentos, com os fabricantes de equipamentos, para atender necessidades dessa nova economia, e com os governos, para que encaminhem uma gestão coerente dos recursos naturais e dos modelos de desenvolvimento.

 Há tanto dinheiro para fomentar o agronegócio, mas esses recursos têm que ser direcionados para modelos que hoje pouco ou quase não participam das economias formais. Também precisamos de um bom “plano de país”, que use nossa capacidade e inteligência inclusive para recebermos recursos internacionais qualificados, que são abundantes, mas que dependem de uma produção coerente com a realidade das crises globais do clima e da perda de biodiversidade.  

resumo dos 7 fundamentos do amazônia 4.0

1. Conhecimento acumulado representado pela biodiversidade Amazônica
2. Habilidade de compreender o conhecimento intrínseco da floresta
3. Aplicação desse conhecimento acumulado para melhorar a vida humana
4. Produção de bens e serviços a partir da biodiversidade, utilizando insumos abundantes em sistemas extrativistas e agroflorestais e transformá-los em algo de valor, com os recursos e as facilidades tecnológicas disponíveis hoje
5. Construção de uma bioeconomia ao mesmo tempo local e global
6. Distribuição equitativa dos benefícios socioeconômicos, na qual todos ganham com a oferta de produtos resultantes da exploração sustentável da floresta
7. Valorização intrínseca do bioma Amazônico, mostrando que a mais efetiva forma de conservação da floresta a médio e longo prazo é o engajamento das sociedades em nível nacional e internacional em sua defesa, manutenção e exploração sustentável.

Fonte: Futuribles

O que acontecerá se o país insistir na rota do desmatamento?

As ameaças das mudanças climáticas são reais e trarão consequências catastróficas para o país e o mundo. A preservação da Amazônia é uma questão central nesse cenário global, que pede esforços conjuntos dos países para reduzir as causas e os efeitos da crise climática.

Existem soluções diante desta realidade. Existem muitas riquezas ambientais na Amazônia que nosso povo pode transformar em riquezas econômicas. Nossa nação tem a responsabilidade de prover, de construir essa transformação, junto à população e com a inteligência presentes na Amazônia. 

Como se engajar

Site da iniciativa
https://amazonia4.org/
Contatos
[email protected]
Redes sociais
Instagram

Imagem no topo da página mostra um protótipo das fábricas-laboratório que serão levadas para Amazônia em 2022. Crédito: Daniel Mira/NOUS Comunicação Consciente. Retrato de Ismael Nobre por Sonia Soares/Amazônia 4.0.