Valmir Ortega fundou a Belterra para disseminar os sistemas agroflorestais e ajudar a frear o desmatamento na maior floresta tropical do mundo. Nesta entrevista, o ex-presidente do Ibama conta o que falta para esse modelo vingar.

A Iniciativa

Quem é
Belterra Agrofloresta
Quem faz
Valmir Ortega (fundador) e equipe
O que faz
Implanta sistemas agroflorestais para o uso sustentável, a regeneração da floresta e o aumento da renda sobretudo de pequenos produtores.
Onde atua
Na Amazônia, em Porto Velho (Rondônia), Altamira, Medicilândia, Uruará, Parauapebas e Canaã dos Carajás (Pará).

Uma iniciativa sediada em dois polos do desmatamento da Amazônia, Pará e Rondônia, quer mudar o modelo produtivo da região. A Belterra Agroflorestas foi fundada pelo geógrafo Valmir Ortega para disseminar os sistemas agroflorestais, que deixam a floresta em pé, geram renda acima da oferecida por commodities, como a soja, e mantêm produtores no campo, como aliados da conservação. 

Mas esse tipo de empreendimento  precisa ganhar escala e apoios públicos e privados para, de fato, ajudar a frear o desmatamento da floresta tropical, afirma Ortega. Ele esteve à frente de órgãos ambientais por quase 15 anos, como Ibama e secretarias estaduais de Meio Ambiente. Dirigiu também a área de políticas da ONG Conservação Internacional do Brasil. Nos últimos anos, rumou para consultorias no setor privado e trabalhos com organizações não governamentais, agências internacionais de cooperação e fundações voltados a uma tarefa revolucionária e urgente: construir negócios que realmente associem produção à manutenção e à recuperação da floresta. 

Confira abaixo os principais trechos da entrevista com Ortega, que também preside os conselhos das ONGs Instituto Centro de Vida (ICV) e Conexsus –Instituto Conexões Sustentáveis e é membro dos conselhos do Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (Funbio) e do World Resources Institute – Brasil.

PlenaMata – Pode resumir sua trajetória em órgãos governamentais e não governamentais, nos níveis federal e estadual? Por que a aposta atual no setor privado? 

Valmir Ortega – Passei 12 anos em governos. Comecei como superintendente de Meio Ambiente do Mato Grosso do Sul. Já em Brasília, coordenei o Programa Pantanal no Ministério do Meio Ambiente, fui diretor de Ecossistemas e presidente-substituto do Ibama. Em 2007, assumi a Secretaria de Meio Ambiente do Pará, onde permaneci até 2009. E aí encerrei minha carreira no setor público. Adiante, passei três anos como diretor de Cerrado e Pantanal e depois como diretor de Políticas na ONG Conservação Internacional, em Brasília. Já em 2018 e rumo ao setor de consultorias, fui um dos fundadores da Conexsus.

A ONG foi criada para promover negócios de base comunitária que ajudem a conservar a floresta, de cadeias produtivas, de arranjos coletivos que usem de forma sustentável a vegetação nativa. Ela é uma organização intermediária que atua em rede com outras entidades focadas em reduzir gargalos para modelagem e execução de negócios comunitários, de acesso a capital para investimento, seja público ou privado, e para melhorar o acesso a mercados mais justos para produtos da floresta.

Outro desafio era buscar e fomentar negócios no Brasil na cadeia de restauração florestal. Percebemos que havia muitos poucos negócios com potencial escalável. Ou seja, se a gente pensar em criar uma dinâmica para restaurar 12 milhões de hectares, uma das metas do país para enfrentar a crise global do clima, seja em que condições forem, se restauração, regeneração ou reflorestamento, precisamos estruturar cadeias de negócios que promovam isso tudo. 

Daí surgiu a ideia para a Belterra Agroflorestas?

Tanto a Conexsus quanto a Belterra vieram da identificação de lacunas para atuação com negócios sustentáveis na Amazônia. A Belterra foi um impulso nesta perspectiva, de como escalar negócios em milhares de hectares na região, em parceria com agricultores e cooperativas. 

Quando o Brasil encerrou um ciclo de forte desmatamento da floresta, por volta de 2012, tínhamos a sensação de que havíamos superado uma dinâmica de desmate a partir de crimes como a grilagem de terras e focada em grandes propriedades. E de que o desmate restante era conectado a uma dinâmica econômica, ou seja, produtores desmatando para expandir áreas produtivas. Assim, enfrentar isso não dependia mais apenas de fiscalização e de controle. Era fundamental aquecer negócios realmente sustentáveis, como ocorria, por exemplo, com apoio do Fundo Amazônia, cujos projetos foram migrando de consolidação de áreas protegidas e da legislação florestal para fomento a atividades produtivas sustentáveis. Concluímos que gerar uma nova dinâmica econômica regional é determinante para encerrar a supressão da floresta. 

Mas as políticas públicas e os recursos desde fundos públicos e privados são insuficientes para gerar mudanças radicais no cenário do desmatamento. Os bancos não estão preparados para financiar e dar escala a estas cadeias produtivas. Havia uma grande lacuna para trabalhar nesses segmentos, incluindo produtos como castanha, açaí e cupuaçu. 

Assim, a Belterra surgiu com o objetivo de testar novos modelos de negócios que sejam capazes de atrair investimentos em larga escala para apoiar produtores também na restauração de áreas degradadas, ajudando a compor paisagens que agreguem agropecuária, agrofloresta, floresta nativa, e, claro, que tenham viabilidade econômica e ecológica.

Gerar uma nova dinâmica econômica regional é determinante para encerrar a supressão da floresta.

Valmir Ortega, fundador da Belterra

Como vocês enfrentam questões como a da capacitação técnica, dos custos para restauração florestal e outros desafios atrelados a esse modelo de produção? 

Não há dúvida do enorme potencial no Brasil para criarmos negócios que envolvam a floresta em pé. O país tem terra, água, capacidades técnica e produtiva. Cacau, andiroba, pupunha, copaíba e tantas outras espécies têm um incrível potencial de mercado. Mas há grandes entraves que reduzem a migração de produtores para sistemas agroflorestais. O primeiro é o custo das agroflorestas. 

A implantação de agroflorestas pela Belterra custa de R$ 10 mil a R$ 25 mil por hectare, enquanto um hectare de soja exige por volta de R$ 6,5 mil. Em contrapartida, um hectare de soja gera uma renda líquida de R$ 1,5 mil a R$ 2,5 mil, dependendo da região do país. Ao mesmo tempo, um hectare de cacau produzido numa agrofloresta tem uma renda líquida por hectare superior a R$ 6 mil. Logo, agroflorestas são sistemas que podem gerar uma renda muito maior aos produtores, e são ecologicamente mais sustentáveis. 

Outra barreira é a da “transição técnica”. É um caminho difícil migrar para agroflorestas para pecuaristas ou produtores convencionais. O conhecimento de espécies e as práticas agrícolas são diferentes. Isso exige tempo e não há canais ou assistência técnica operando na escala e na velocidade ideais. 

Outra pedra no caminho é comercial. Por exemplo, hoje um frigorífico compra o boi na porteira da sua propriedade. Buscam o boi para você. Quando você pensa em soja, arroz e feijão, todos também têm cadeias estruturadas onde há poucas dificuldades de comercialização. Mas produtos agroflorestais são muito diversificados, demandando outras lógicas para formação de preços, e não têm esses mecanismos comerciais bem estruturados, mesmo que já tenham boa aceitação em várias regiões do país. 

Diante deste cenário, como a Belterra tem apoiado produtores a migrar para os sistemas agroflorestais?

Trabalhamos com contratos de, no mínimo, 10 anos para uma transição técnico-produtiva na Amazônia. Nós fazemos os investimentos. Para quem não quer nenhum risco, quer valorizar a propriedade e ter uma alternativa de renda imediata, o arrendamento é uma oportunidade. Já a parceria rural serve ao agricultor que quer participar do processo, mas não tem conhecimento e nem quer correr riscos financeiros sozinho. Assim, a Belterra investe, cobre o risco financeiro e o produtor entra com a terra e o trabalho. 

Nesse modelo, assumimos os riscos da operação nas propriedades e capacitamos os produtores para que, em breve, expandam sua produção de maneira sustentável e com condições próprias. Outra possibilidade são os contratos de integração, onde o produtor já tem algum conhecimento e mais autonomia. Nesse caso, promovemos capacitação, treinamento, acesso a créditos e mercados, com garantia de compra futura. Cada perfil de agricultor tem um perfil de contrato possível, mas em todos o maior risco financeiro é da Belterra.

Quais são hoje os principais financiadores das ações da empresa?

Nosso principal investidor é o Fundo Vale e, recentemente, passamos a contar com o apoio da Good Energies Foundation, da Suíça.

O que é o Movimento B, do qual a Belterra faz parte?

É um movimento global cujo nome deriva de B-Corp, ou seja, de empresas voltadas a negócios positivos para o planeta, para as comunidades e trabalhadores, fornecedores e compradores. É uma espécie de certificação criteriosa, que exige mais do que o cumprimento da legislação. Há 216 companhias certificadas no Brasil, somando 25 mil pessoas entre funcionários e beneficiários. Algumas são grandes, mas a maioria é de pequenas e médias empresas. Elas buscam lucro também, claro, mas o foco não é exclusivamente este. Empresas enveredam cada vez mais nessa rota da sustentabilidade porque os mercados exigem. É um processo sem volta.

Com apoio da Conexsus, a Cooperativa Mista dos Produtores Extrativistas do Rio Iratapuru (Comaru), no Amapá, produziu e vendeu este ano 25 toneladas de castanha, em plena pandemia de covid-19. Que reforço isso traz em termos de potencial produtivo na Amazônia?

No caso da Conexsus, trabalhamos com organizações de base comunitária. Esse é um bom jeito para ganharmos escala, pois poderemos alcançar milhares de produtores na Amazônia e transformar a dinâmica econômica, mantendo o relacionamento deles com a floresta. Entendemos que cooperativas, associações de produtores e outros arranjos são o formato adequado para isso.

 Um primeiro levantamento da Conexsus, em 2018, apontou 1.040 cooperativas no Brasil, 400 delas na Amazônia. É um número grande de cooperativas que mobilizam centenas de milhares de produtores e que ajudam a processar a produção e resolver a questão da comercialização. São aspectos relevantes para dar escala à produção, distribuição e condições comerciais mais justas. 

Itens produzidos com a floresta preservada estão chegando de maneira satisfatória nos mercados brasileiros? O que falta para tudo isso deslanchar? 

Precisamos ampliar mercados para produtos da floresta nativa, consolidar cadeias que envolvam a agricultura familiar, que reduzam a pressão sobre a floresta e que tirem a dependência que os agricultores têm da pecuária, das commodities de grãos. O Brasil tem um mercado consumidor gigantesco. Poderíamos aproveitar a capacidade de consumo interno e a demanda crescente por produtos de origem mais natural, sobretudo entre as novas gerações. Mas falta um ambiente de negócios e condições de acesso a capital para esses mercados crescerem. 

As linhas de financiamento públicas não são facilmente acessíveis para as cadeias de produtos da floresta. É muito mais simples pegar financiamento para pecuária e soja do que para implantar manejo extrativista, como de açaí ou de castanha. Em 2019, assinamos um acordo com o Banco da Amazônia para facilitar o acesso ao Pronaf por cadeias florestais. Esperamos que isso avance, mas ainda assim será muito aquém do que gostaríamos, pois a demanda é muito maior. 

O Brasil tem um mercado consumidor gigantesco. Poderíamos aproveitar a capacidade de consumo interno e a demanda crescente por produtos de origem mais natural, sobretudo entre as novas gerações. Mas falta um ambiente de negócios e condições de acesso a capital para esses mercados crescerem. 


Os arranjos com empresas de médio e grande porte que adquiram esses produtos levará a uma produção mais estruturada por organizações que estão com o pé na floresta. A iniciativa Amazônia 2030 destaca um conjunto de produtos que a agricultura familiar pode produzir na Amazônia e conquistar mercados nacional e globalmente. Nós temos mais de 1 milhão de agricultores familiares na região e mais de 20 milhões de hectares em assentamentos rurais. 

Qual a postura do atual governo diante destes desafios e oportunidades? 

Neste governo tivemos uma redução forte de políticas que tinham alta relevância para as cooperativas. Até 2018, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e políticas semelhantes cumpriram um papel relevante de orientar compras da agricultura familiar. Durante a década anterior, os volumes de compras cresceram. Mas projetos como esse foram drasticamente reduzidos pelo governo. Impactos como esses foram seguidos pela pandemia, que restringiu ainda mais os negócios das cooperativas. Uma das primeiras iniciativas da Conexsus durante a pandemia foi lançar um fundo emergencial para financiar cooperativas, pois sabíamos que ficariam sem receita. Apoiamos mais de 80 cooperativas no Brasil.

Talvez no ano que vem, um ano eleitoral, questões como essas sejam pautadas de forma mais adequada. Precisamos ter governo e sociedade alinhados com um projeto de futuro sustentável para o país daqui a 10, 20, 30 anos. Nesses últimos três anos ,tivemos um governo federal totalmente desalinhado com o que o resto do planeta busca em termos de transição verde. Poderíamos estar superando a crise da covid-19 com investimentos sustentáveis.

Adaptações na cesta básica também não seriam um meio importante para comercialização de produtos da floresta?

Eu acho que existe alguma variação regional na cesta básica, mas o básico dos produtos é comum, como arroz, feijão e alguma proteína. A gente sempre tem que insistir que a alimentação escolar é um bom espaço para isso. Alguns estados desenvolveram experiências para ampliar o consumo de produtos regionais nas escolas, como uma forma para educar esse público a consumir alimentos mais saudáveis e menos industrializados. Mas acho que as cestas básicas são um meio importante a ser desenvolvido. Políticas públicas para isso são importantes, levando ao engajamento de prefeituras e de estados. 

Podemos pensar nessas florestas como se fossem duas linhas de produção. Nas plantadas, teríamos uma linha tipo “fast food”, em grandes volumes constantes. Nas nativas, teríamos uma linha “gourmet”, com enorme diversidade de espécies, de produtos e de usos que levariam a um valor diferenciado de mercado. Um bom casamento entre esses tipos de economias pode ser a receita para o ‘Vale do Silício na Amazônia’. 

Em abril, no podcast do Zeca Martins, você comentou que a agrofloresta é o nosso “Vale do Silício”. O que você quis dizer com isso?

Indo direto ao ponto, no que a gente pode ser competitivo no Brasil? Eu acho que onde podemos ser imbatíveis e ter o nosso próprio Vale do Silício é no uso da biodiversidade. Isso envolve biotecnologia, química, bioeconomia. Não tem como competir conosco nesse campo, que deve ser sustentável, se soubermos investir e usar a melhor tecnologia. Não estou falando da produção básica de commodities, como soja e milho. Há um caminho imenso a se explorar combinando aproveitamento e restauração florestal. No governo do Pará, tentamos implantar um programa estadual para criar uma nova economia florestal. Mas isso tudo não é incompatível ou concorrente com economias convencionais, como as florestas plantadas. Associar esses modelos é uma forma de gerar valor agregado. 

Além disso, sistemas plantados e agroflorestas podem ofertar volumes previsíveis de produção, estruturando arranjos produtivos mais atraentes a indústrias e investimentos. Ou seja, podemos pensar nessas florestas como se fossem duas linhas de produção. Nas plantadas, teríamos uma linha tipo “fast food”, em grandes volumes constantes. Nas nativas, teríamos uma linha “gourmet”, com enorme diversidade de espécies, de produtos e de usos que levariam a um valor diferenciado de mercado. Um bom casamento entre esses tipos de economias pode ser a receita para o ‘Vale do Silício na Amazônia’. 

Como se engajar

Site da iniciativa
www.belterra.com.br
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